spot_img
HomeCONTEÚDOSCidadesCIDADE E SEGURANÇA

CIDADE E SEGURANÇA

Caio Vassão
Caio Vassão
Head de inovação na Kyvo e fundador da Bootstrap. Arquiteto e urbanista, há mais de 25 anos pesquisa as complexas relações entre urbanidade, tecnologia, comunidades e inovação. Professor e pesquisador coordenador do grupo Cenários Urbanos Futuros (RITe-FAUUSP), além de consultor em projetos de inovação e transformação organizacional, com abordagem do Metadesign para processos de transformação cultural e urbana.

É possível tratar do tema “Segurança” a partir de um ponto de vista expandido, com o cuidado que merece para que possamos ir além da “segurança como coerção da violência

Recentemente, participei de debates a respeito de “Segurança em Cidades Inteligentes”. Fiquei preocupado com a noção, amplamente aceita, de que “Segurança” é uma palavra sinônima de “Coerção da Violência”, ou “Combate ao Crime”. Mesmo que os especialistas em segurança pública não declarem isso de modo tão direto, é o que se pode depreender de suas falas, propostas e ações.

Por outro lado, é possível tratar do tema “Segurança” a partir de um ponto de vista expandido, com o cuidado que merece para que possamos ir além da “segurança como coerção da violência”. Creio que, mais uma vez, estamos reféns de conceitos urbanos bastante disseminados e aceitos – sobre os quais muito se fala e faz – mas que poderiam se beneficiar de um ponto de vista crítico, renovado e criativo.

Um Cenário Análogo – Prevenção de Incêndios

Quanto ao tema “incêndios”, creio que todo mundo concorda com a seguinte afirmação:

– “uma cidade de sucesso, é aquela que tem pouquíssimos incêndios.”

E ninguém concordaria com:

– “uma cidade de sucesso, é aquela com muitos incêndios, mas dotada de um corpo de bombeiros muito eficiente!”

Em outras palavras, uma cidade de bom desempenho, quanto à questão “incêndios”, é uma em que incêndios não acontecem, sim? Ou é uma cidade em que prédios se incendeiam o tempo todo, mas somos capazes de atendimento rápido e competente?

No caso de uma cidade em chamas, não deveríamos nos perguntar o porquê de tantos incêndios? Pois, se trata de um problema sistêmico: as causas de tanto fogo estariam nos métodos construtivos e materiais utilizados, no arranjo dos edifícios, nas práticas de uso de fogo para cozinhar, aquecer água e outras atividades, nas condições das instalações elétricas, etc. Não se trata de bombeiros mais ou menos competentes: não são eles que poderiam impedir os incêndios – podem apenas lidar com o incêndio iniciado.

Obviamente, as duas questões estão inter-relacionadas: prevenção e combate a incêndio. Mas, pensando a longo prazo, a prevenção a incêndios tem um papel prioritário, frente ao combate de incêndios. Ninguém dirá que sente segurança em um prédio que pode pegar fogo a qualquer momento, mas o corpo de bombeiros logo virá ao resgate.

Um outro ponto de vista

No caso da segurança pública, a opinião geral a respeito do assunto “prevenção da violência” parece ser apenas uma variação do assunto “combate ao crime”.

Será que, ao invés de priorizar a coerção à violência, não poderíamos priorizar ações que promovem uma cidade segura por meio do incremento da socialidade (a qualidade do meio social) e da socialização (o ato de participar da sociedade)?

Esse ponto de vista não é novo. Na verdade, ele é quase unânime em urbanismo. Fala-se insistentemente do papel de comunidades vivas e vibrantes como um meio quase certo de redução drástica da violência urbana. Afinal, basta observar um bairro em que a sociedade está inativa ou ausente – ruas desertas, muros altos, tráfego intenso – para saber que estamos em um lugar inseguro.

No entanto, uma abordagem que procura reduzir a violência urbana por meio do incremento dos laços comunitários e sociais aparece apenas de modo tímido na gestão da segurança pública: salvo raras e valiosas exceções, pouco se fala de cidades seguras porque habitadas por comunidades ativas, compostas por pessoas que se conhecem mutuamente: a raridade da violência é produto de um contexto social naturalmente não-violento.

Essa abordagem compreende a segurança não apenas como a “proteção de pessoas inocentes” frente à ameaça de “malfeitores”, mas prioritariamente como a realização cotidiana de um conjunto de rituais de presença e observação mútua – que criam o senso de pertença a uma comunidade viva, que se auto-regula em suas relações de confiança, interdependência, criação de riqueza coletiva, movimentos de visualização e reconhecimento mútuos.

Mas é importante reconhecer que a segurança urbana é um assunto complexo. Não podemos afirmar que sabemos, de modo resumido, o que é “segurança” – trata-se de um conceito que entrelaça a guerra e suas técnicas, a concentração ou distribuição de renda, os ritos sociais, os lugares sócio-políticos, gênero e raça, o próprio entendimento do conceito de “cidade”.

Uma cidade segura é uma cidade vigiada, bem protegida? Ou é uma cidade integrada, na qual os laços de participação e pertença, respeito e convívio são tão estreitos e numerosos que simplesmente não há espaço para a violência?

Um Cenário Futuro: Cidade Sem Muros – Cidade Vigiada

Imagine um mundo urbano em que tudo é rastreado 24 horas por dia, 7 dias por semana, inclusive pessoas.

Isso é possível por meio da tecnologia da Identificação por Rádio-Frequência (RFID), que já é utilizada, hoje, para numerosas formas de controle de patrimônio, acesso a edifícios, circulação de veículos urbanos, tráfego aéreo, rastreamento de carga (viva e não-viva), alimentos, animais e pessoas. Trata-se de uma tecnologia barata, confiável e flexível. Um dos seus usos mais evidentes está nas formas de pagamento “touchless”: o chamado Near-Field Communication (NFC), disponível em smartphones e cartões de débito/crédito. Usamos RFID para tantas finalidades diferentes, que alguns consideram que a Internet das Coisas (IoT) é quase um sinônimo de RFID e sua miríade de aplicações.

Um aspecto preocupante da aplicação do RFID para segurança pública é que já houve propostas em diversos países para que o uso da tecnologia seja obrigatória em seres humanos – por meio de seu implante subcutâneo: desta maneira, as autoridades saberiam onde todas as pessoas estão o tempo todo. As experiências históricas com a marcação de pessoas nos ensinaram que essa prática conduz, quase inevitavelmente, a situações terríveis (para um exemplo assustador, é só lembrar do nazismo).

Mas, mesmo que o uso de implantes RFID não seja mandatório (espero que não!), a chamada “visão computacional” permite, em tempo real, interpretar imagens capturadas por câmeras de vigilância, gerando muita informação a respeito das cidades: número de pessoas que circulam em uma rua ou bairro, seus múltiplos percursos pela cidade, a identidade de cada indivíduo, localização e quantidade de veículos que circulam na malha viária, o estado de conservação das áreas verdes e vegetais, fauna urbana, tráfego aéreo, manifestações sócio-culturais, etc.

Neste contexto tecnológico, o reconhecimento facial vem levantando preocupações similares ao implante mandatório de RFID: são relativamente comuns os chamados “falsos positivos” (quando o reconhecimento facial identifica erroneamente um cidadão como um criminoso procurado), assim como perderemos o anonimato (valor fundamental de uma sociedade verdadeiramente cosmopolita) em uma cidade permanentemente vigiada: vislumbra-se um futuro em que o cidadão comum será oprimido por um sistema de vigilância que restringe sua liberdade de ir e vir.

Ainda, a geração maciça de dados, por meio de sensores dos mais diversos tipos em todo o meio urbano – acoplados a veículos, objetos, mercadorias, seres vivos e pessoas – é um dos grandes motivadores do enorme movimento global de convergência entre Cidades Inteligentes, IoT e Big Data e Inteligência Artificial na criação de sistemas de monitoramento urbano para segurança pública.

Um exemplo que ilustra essa convergência tecnológica, mesmo que fora do área de segurança pública, é o aplicativo Waze: por meio de Big Data em tempo real, o app é capaz de recomendar trajetos menos congestionados, utilizando um modelo de tráfego atualizado em tempo real a partir de dados oriundos dos smartphones de milhões de usuários simultâneos e anônimos.

Na convergência entre visão computacional, big data, RFID, IoT, e outras tecnologias (especialmente as redes rápidas do 5G), se descortina um futuro em que a vigilância, mesmo que minimamente invasiva (sem implantes ou reconhecimento facial), se desempenha de modo complexo e, ainda assim, eficaz: sistemas “inteligentes” serão capazes de criar modelos da “situação urbana” em tempo real, com extremo detalhe/granularidade e alto grau de confiabilidade. Como afirmou um especialista de segurança: no passado, os personagens de filmes de espionagem diziam “siga aquele carro!”, no futuro, diremos “siga todos os carros na cidade, há uma semana atrás” – dados altamente detalhados estarão armazenados e disponíveis para consulta posterior ao fato. Aquilo que não foi diretamente registrado será depreendido por inteligência artificial.

Mas, como seria uma cidade permanentemente vigiada?

Por um lado, existe o temor, perfeitamente justificado, de que perderíamos a característica libertária das cidades: em nome da segurança, as cidades deixariam de ser ambientes metropolitanos e cosmopolitas – viveríamos em uma sociedade pautada pelo controle social e pelo extremo cerceamento da liberdade individual.

Por outro lado, é possível que todos os dispositivos que inventamos, ao longo da história das cidades, para evitar “eventos violentos”, se tornem obsoletos: muros, portas, trancas, cofres, cadeados, portões altos, cercas, fossos, pontes levadiças, etc. Quase todos esses dispositivos impedem o acesso de pessoas indesejadas ou perigosas a locais específicos (nossa casa, e todos os outros lugares urbanos). Mas, em uma sociedade totalmente vigiada, qual seria a função desses dispositivos tão familiares?

Um exemplo dessa nova realidade é o sistema de pedágio baseado em RFID, cada vez mais comum: no lugar de um funcionário controlando (vigiando) a passagem de veículos, um sistema automatizado monitora a posição dos veículos e faz a cobrança. Hoje, já existem “zonas pedagiadas” em algumas grandes metrópoles, sem nenhum monitoramento humano local ou qualquer obstáculo físico – para evitar a inadimplência, os valores viriam associados aos impostos (como IPVA) ou na forma de multas.

Como seria uma cidade que não impõe obstáculo físico algum ao movimento das pessoas? Em que a segurança (por meio da constante vigilância e eventual coerção) é um dado, não uma dúvida? Uma cidade em que estão completamente ausentes os dispositivos tradicionais de segurança – muros, portas trancadas, cercas, grades, etc. – seria um ambiente totalmente diferente de qualquer coisa que a humanidade chamou até hoje de “cidade”.

Uma rara referência tradicional são as vilas e aldeias de povos aborígenes: não há meios de se impedir a circulação das pessoas em uma comunidade indígena – as pessoas entram onde sabem que podem entrar, nunca onde não são bem-vindas; e essas restrições são de caráter simbólico, não de segurança ou fuga da violência.

Talvez, esses modos de vida tradicionais possam ser um indício para imaginarmos uma cidade segura para o momento atual, mesmo sem a alta-tecnologia que mencionei acima. Talvez, nossa crença na tecnologia como algo que possa garantir segurança pública seja motivada por nossa descrença na possibilidade de uma sociedade igualitária e pacífica.

A segurança é um acordo silencioso.

O que torna uma cidade segura? O que faz de uma região urbana um ambiente confiável, em que pessoas vulneráveis podem passear à vontade?

São numerosos os condicionantes que precisam ser articulados para criar-se um ambiente urbano seguro.

Um aspecto fundamental é a melhoria da distribuição de renda, por meio da qual pode-se promover um ambiente social de abundância e conforto, não expondo a população a meios de sobrevivência que são desesperados, possivelmente ilícitos e violentos.

A segurança passa também pelo modo como se faz a guerra. Longe de ter sido erradicada, a guerra se tornou um processo menos “cinético” (conflitos armados) e mais “informacional” (conflitos ideológicos e de contra-informação). Na antiguidade e período medieval, a guerra envolvia o enfrentamento direto entre batalhões: as cidades eram muradas, para dificultar o acesso e bloquear a circulação. À medida que a guerra foi se sofisticando, o meio urbano também se transformou: a guerra de pólvora tornou os muros obsoletos, a guerra aérea e de satélites tornou a ocupação territorial obsoleta, e a guerra informacional (a chamada “guerra híbrida”) tornou os limites urbanos obsoletos – vivemos uma cidade expansiva, sem distinção clara entre o meio urbano e rural, entre público e privado, etc.

Por outro lado, a segurança também tem a ver com o modo como criamos pactos tácitos e explícitos entre as pessoas que habitam uma mesma região urbana: As pessoas se conhecem e se apoiam mutuamente? Ou mal se conhecem, estão se lixando umas para as outras? 

Algo a se aprender, ao ponderar sobre segurança, e sua miríade de condicionantes, é que não podemos concentrar nossos esforços para tornar a cidade segura lidando apenas com a coerção da violência: quando chegamos nesse ponto, a batalha já está perdida, e estamos lidando com mortos e feridos. É como se estivéssemos vivendo em uma cidade em chamas, bombeiros trabalhando 24 horas por dia.

A segurança é um pacto silencioso. É um arranjo social, econômico e cultural favorável, corroborado por rituais complexos que integram todos esses aspectos.

No caso da concretização do cenário tecnológico futuro que desenhei acima, novos rituais de segurança irão emergir. Não porque a tecnologia vai aguardar que criemos esses rituais, mas porque seremos forçados, pela própria tecnologia, a criá-los. Seria interessante fazer isso de modo intencional.

As ideias e opiniões expressas no artigo são de exclusiva responsabilidade do autor, não refletindo, necessariamente, as opiniões do Connected Smart Cities  

Artigos relacionados
- Advertisment -spot_img
- Advertisment -spot_img
- Advertisment -spot_img

Mais vistos