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CIDADES, CIDADANIA E COLABORAÇÃO: O PAPEL DO DESIGN

Caio Vassão
Caio Vassão
Head de inovação na Kyvo e fundador da Bootstrap. Arquiteto e urbanista, há mais de 25 anos pesquisa as complexas relações entre urbanidade, tecnologia, comunidades e inovação. Professor e pesquisador coordenador do grupo Cenários Urbanos Futuros (RITe-FAUUSP), além de consultor em projetos de inovação e transformação organizacional, com abordagem do Metadesign para processos de transformação cultural e urbana.

Todo mundo concorda que as cidades do futuro precisam ser mais centradas nas pessoas e em suas necessidades: a qualidade de vida do cidadão deve ser o maior objetivo de todos os projetos urbanos e de cidades inteligentes.

No entanto, como se faz isso? Como se “coloca o cidadão no centro” dos projetos urbanos?

O que o design fez pela tecnologia

Entre as décadas de 1950 a 1980, a ciência da computação, por meio da área especializada chamada “interação homem-computador” (IHC), empreendeu numerosos experimentos na criação de interfaces entre seres humanos e a tecnologia digital. No entanto, produziu-se resultados bastante questionáveis: tanto eram mal sucedidos em produzir software de fácil utilização, como não alcançavam o “consumidor” – o usuário não especialista em computação.

Da década de 1980 aos anos 2000, acontece o rápido desenvolvimento de uma sofisticada e complexa abordagem de design de software e hardware. Inicialmente denominada “usabilidade”, articula-se um conjunto de práticas de engajamento direto dos usuários no processo de construção de soluções digitais. Essa abordagem foi aplicada em numerosas frentes: aplicativos, sistemas operacionais, websites, interfaces para dispositivos eletrônicos variados. Em seguida, com o surgimento da chamada “Web 2.0”, essa abordagem foi parte fundamental da criação das plataformas que usamos até hoje em dia: do Google, Facebook, redes sociais, repositórios de informação, como Wikipedia e Yahoo.

Em meados da década de 2000, a “computação móvel” cria dispositivos portáteis e relativamente baratos, dotados de GPS e mapas, permitindo novos usos e aplicações. Imaginava-se que a “inclusão digital” viria por meio de computadores desktop. Mas, ela aconteceu por meio dos Smartphones: computadores portáteis de baixo custo e alta performance, dotado de um vasto ecossistema de aplicativos e serviços, criando-se uma nova economia.

Neste momento, torna-se imperativo que todas as organizações públicas e privadas passem pela chamada “transformação digital”, a mudança profunda e irreversível de práticas organizacionais trazida pela automação de processos, sistemas de informação e desenvolvimento de aplicativos.

As práticas de design são fundamentais para o sucesso dessa transformação, pois viabilizam a criação de sistemas informação acessíveis à população em geral. Essas práticas se organizam em um amálgama variado, complexo e rigoroso de práticas que articulam o design, a antropologia, a psicologia social e a cultura organizacional, sempre envolvendo o usuário final no processo de cocriação das soluções.

O Design além da Tecnologia

Historicamente, o design era dedicado à criação de artefatos industriais: mobiliário, vestuário, veículos, publicações impressas, logomarcas, utensílios, jogos e brinquedos – a totalidade dos artefatos industriais que nos cerca é produto do design. A partir da revolução digital, o design passa a dar conta do crescente número de artefatos, soluções, produtos e serviços que surgiam neste contexto.

Surgem vertentes do design dedicados aos aspectos específicos da transformação digital: Design de Interfaces Digitais, Design de Interação, Design de Serviço, Design da Informação, dentre outras. À medida que se revelavam os sucessos dessas abordagens, passou-se a compreender um “jeito de pensar” do design que, gradualmente, transbordava para outros contextos sociais e aplicações. Esse sucesso promove a popularização do chamado “Design Thinking”: uma coleção de práticas e ferramentas para o rápido, simples e efetivo engajamento do público na criação de soluções para empresas, indústria, tecnologia e computação.

Ao longo dos últimos 20 anos, o design foi além da tecnologia, e começou a tratar das relações sociais e organizacionais como um todo. A evolução do Design de Serviço ilustra essa transição: inicialmente uma metodologia para a criação de serviços digitais (plataformas e serviços on-line), passa a ser utilizada para a criação de qualquer tipo de serviço (digital ou não), e depois se expande para considerar todas as relações entre as pessoas que consomem ou provém o serviço, as compreendendo como “usuários” dotados de necessidades específicas que são identificadas e articuladas em uma solução integrada e de alto valor agregado.

Em conjunto, essas práticas de design passam a ser denominadas pelo termo “Design Centrado no Usuário”, cujo foco é a “Experiência do Usuário”. A sigla UX, do inglês “User Experience”, começa a indicar um modo de pensar em que as necessidades das pessoas são consideradas o aspecto mais importante de qualquer iniciativa. O que há de inovador nesta abordagem é que as propostas nascem do diagnóstico das necessidades reais do usuário, e não de conceitos criados de modo unilateral por especialistas com pouco ou nenhum contato com o público. O caminho tradicional da indústria – que se inicia no empreendimento, e só depois chega ao usuário – é invertido: as iniciativas nascem das necessidades do usuário, e são desenvolvidas para dar forma ao empreendimento. Assim, o design é capaz de ancorar iniciativas e propostas na realidade econômica, social e cultural do público-alvo com alto grau de aderência e sucesso.

Toda inovação contemporânea deve grande parte de seu sucesso ao conjunto de técnicas e métodos do UX. É por isso que o design é, hoje, amplamente reconhecido não apenas como a criação de artefatos mas, principalmente, como um produtor de “valor organizacional”: sua aplicação permite repensar e criar processos nas empresas, corporações, organizações, governo, a criação e implementação de políticas públicas, laboratórios e projetos de inovação, o desenvolvimento de serviços urbanos, circuitos turísticos ou serviços educacionais, o planejamento estratégico de organizações (públicas e privadas), a criação de políticas públicas, a transformação das estruturas organizacionais, etc.

Design e práticas urbanas

As consequências do design sobre a vida urbana são múltiplas: aplicativos e soluções são criados para o usufruto da cidade – serviços de mobilidade, compras, turismo, gastronomia, habitação e hospitalidade, etc. Mas, também o contexto urbano é transformado pelo uso dessas soluções: o trabalho remoto tem impacto sobre a mobilidade urbana e os padrões territoriais da cidade.

Assim como o design é capaz de “desenhar” a experiência do usuário (UX), o urbanismo contemporâneo começa a considerar como o design pode contribuir para “desenhar” a experiência do cidadão (CX): a transformação dos padrões de mobilidade, habitação, acesso a serviços públicos, e da participação do indivíduo na cidade.

Parte dessas iniciativas dedicam-se a transformar os próprios métodos de urbanismo: no lugar de praticar-se um urbanismo “feito em gabinete”, proposto e realizado por especialistas entrincheirados em suas certezas profissionais, promove-se abordagens como o “Urbanismo Tático”, que engaja o público habitante de uma região urbana na reconfiguração de uma peça de infraestrutura ou equipamento público; ou o “Urbanismo Colaborativo”, que se baseia tanto no design, como nas práticas coletivas do orçamento participativo, das comunidades e mutirões, do ativismo social e urbano.

De modo geral, procura-se coordenar as necessidades dos múltiplos públicos envolvidos (stakeholders) na construção de uma solução de valor reconhecido por estes: os habitantes da cidade, os agentes públicos, o poder legislativo, as construtoras, os investidores, o sistema financeiro, etc. – todos podem ser vistos como “usuários” cuja experiência se integra à vida urbana.

Esse conjunto de técnicas participativas e colaborativas é, cada vez mais, reconhecido como um meio de incrementar sensivelmente o sucesso de uma iniciativa urbana ou imobiliária. Em contraste com métodos tradicionais aplicados em projetos que, mesmo bem intencionados, são mal sucedidos porque ignoram as necessidades dos habitantes do entorno, dos cidadãos e as particularidades do contexto sócio-cultural e econômico específico.

Talvez um exemplo infame desse “urbanismo de gabinete” seja a reforma da Praça Roosevelt (São Paulo), na década de 1970: um projeto desastroso, que isolou o território da praça de seu entorno, excluiu a população habitual, criando numerosas situações de violência urbana.

Mesmo com o reconhecimento do valor dos métodos colaborativos, a vasta maioria dos projetos de negócios imobiliários contemporâneos continua ignorando as necessidades da população, dedicando-se exclusivamente a gerar retorno ao investimento, mesmo que em detrimento da qualidade de vida na cidade, da sustentabilidade ambiental e da paisagem das cidades. Desastres urbanos e arquitetônicos, mesmo que bem sucedidos como formas de investimento e renda.

As práticas do design poderiam transformar esse cenário, criando-se oportunidades de escutas dos múltiplos públicos, articulando uma visão urbana mais complexa, sofisticada, inclusiva e sustentável.

Design e Metadesign – participação e cidadania 

Mas, no contexto urbano, o design enfrenta muitos desafios, com destaque para:

1 – Resistência Institucional – A proposta do design é por um novo modo de pensar que, mesmo incluindo demandas da empresa, instituição pública ou privada, deve prioritariamente atender às necessidades dos cidadãos e usuários. As instituições e organizações estão muito habituadas a impor decisões unilaterais, mesmo que isso custe o sucesso da empreitada. Além disso, existe uma cultura de tolerância ao fracasso quando ele é causado por essas decisões unilaterais – enquanto as práticas colaborativas são excessivamente criticadas quando não geram sucessos comerciais ou institucionais imediatos.

2 – Complexidade do Meio Urbano – O design, habituado a soluções especializadas e de escopo restrito, tem dificuldade em compreender a complexidade da cidade em sua totalidade, e oferece métodos e ferramentas limitadas ou mesmo ineficazes para construir-se uma visão holística do contexto urbano, dos múltiplos processos concomitantes e concorrentes que incidem sobre um projeto de intervenção urbana – mesmo que de escala modesta. Essa dificuldade fragiliza o design frente às práticas arraigadas do urbanismo tradicional.

Ao longo de minhas pesquisas e prática profissional, desenvolvi uma abordagem avançada de design: o Metadesign. Surgido na Escola de Design de Ulm, na década de 1960, o Metadesign tem uma longa história, que passa pela biologia, teoria do projeto e da arte, ciência política, tecnologia digital, design gerativo e teoria da complexidade. Minha contribuição foi construir uma visão sintética e rigorosa do Metadesign, capaz de compreender a complexidade dos ecossistemas (naturais, culturais, urbanos ou tecnológicos) e prover soluções a problemas complexos.

O Metadesign propõe lidar com tais desafios da seguinte maneira:

1 – Provocar transformações na cultura organizacional, a tornando mais sensível às necessidades dos usuários e cidadãos, dos colaboradores, funcionários e agentes (públicos e privados). Isso se dá por meio de técnicas de engajamento público e de facilitação de processos colaborativos.

2 – Construir uma visão dos processos e projetos urbanos em sua totalidade, para que os empreendedores ou agentes públicos sejam capazes de compreender o contexto dos quais fazem parte e propor ações adequadas a cada momento do projeto em questão. Isso se dá por meio da visualização dos ecossistemas, localizando pontos privilegiados de atuação e intervenção.

Se o design se ocupa das relações de micro- e média escala da experiência do cidadão, o Metadesign se ocupa dos múltiplos atores sociais e suas relações institucionais, comunitárias e empresariais – as relações de macro-escala da cidade. Essa abordagem permite desenvolver e implementar a arquitetura organizacional necessária para que as ações sejam bem sucedidas.

O Metadesign considera que a cidade é um artefato cocriado pela sociedade como um todo, e que a cidadania é o próprio exercício dessa cocriação, que se dá em múltiplos níveis: desde o orçamento participativo, engajando o cidadão, associações e grupos de interesse, até a construção de políticas públicas de alcance nacional, engajando governos, órgãos e agências nacionais e internacionais.

Casos de aplicação do Design e do Metadesign

As abordagens complementares do Design e do Metadesign foram aplicadas a muitos projetos. Dos quais participei e coordenei atividades, apresento alguns destaques a seguir.

A Carta Brasileira das Cidades Inteligentes é, hoje, o documento de referência para o setor no país, e foi cocriada por um conjunto extenso de especialistas, por meio de um processo colaborativo que envolveu mais de mil pessoas.

Os Objetivos do Desenvolvimento Urbano Sustentável foram construídos de modo colaborativo, envolvendo especialistas do setor, assim como representantes do poder público municipal e estadual nas cinco regiões do Brasil.

A Estratégia Nacional de Governo Digital foi desenvolvida com o apoio de um processo colaborativo que envolveu representantes do governo municipal, estadual e federal, e contou com o apoio de múltiplos parceiros institucionais, dentro e fora do governo federal.

O Lellolab, laboratório de inovação da Lello Condomínios (maior gestora de condomínios do país), envolveu um processo colaborativo no estabelecimento de seus objetivos estratégicos, assim como o desenvolvimento de inovações fundamentais para o futuro da vida em comum nas cidades.

O grupo Inovação em Educação Profissional, do Senac São Paulo, é responsável pelo desenvolvimento de práticas de ensino e aprendizagem que são o estado da arte do setor no Brasil, e coordenam um complexo ecossistema de professores, alunos e unidades operacionais em uma visão arrojada do futuro da educação profissional.

Todos esses projetos contaram com o apoio crucial do Metadesign para compreender seus complexos contextos e oportunidades, assim como utilizaram técnicas do Design Centrado no Usuário para desenvolver ações e produzir entregas de alto valor reconhecido.

O Design e o Metadesign podem ser aplicados para transformar as relações entre os atores sociais envolvidos em projetos urbanos nas mais variadas escalas e contextos da construção das cidades, sempre com foco na melhoria da qualidade de vida do cidadão e em viabilizar a participação cidadã no futuro das cidades.

As ideias e opiniões expressas no artigo são de exclusiva responsabilidade do autor, não refletindo, necessariamente, as opiniões do Connected Smart Cities  

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