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DENSIDADE URBANA, INFRAESTRUTURA, COMUNIDADES E SUSTENTABILIDADE

Caio Vassão
Caio Vassão
Head de inovação na Kyvo e fundador da Bootstrap. Arquiteto e urbanista, há mais de 25 anos pesquisa as complexas relações entre urbanidade, tecnologia, comunidades e inovação. Professor e pesquisador coordenador do grupo Cenários Urbanos Futuros (RITe-FAUUSP), além de consultor em projetos de inovação e transformação organizacional, com abordagem do Metadesign para processos de transformação cultural e urbana.

Os modelos consagrados de urbanidade pouco fazem quanto à regeneração dos biomas

O título desse artigo representa um consenso em urbanismo: aumentar a densidade urbana incrementa a eficiência da infraestrutura urbana e a intensidade da interação social e, assim, a cidade se torna mais habitável e sustentável.

Proponho investigar melhor essa correlação quase unânime entre urbanistas: ela pode ser reconfigurada para que possamos propor, desenvolver e implementar cidades que sejam regenerativas, e não apenas sustentáveis.

A crise ecológica não será resolvida por meio dos modelos urbanísticos consagrados.

Primeiramente, é preciso reconhecer que as cidades, especialmente após a Revolução Industrial, são “desastres ecológicos normalizados”: vemos como normal e aceitável a tremenda pegada ecológica de tecnologias urbanas e estratégias de ocupação territorial nocivas ao meio-ambiente e ao bem-estar social. Em segundo lugar, sabemos hoje que os danos causados por esse desastre são mais graves do que se imaginava, e que a chamada “sustentabilidade” não será o suficiente para evitar-se crises socioambientais ainda mais graves.

Os modelos consagrados de urbanidade pouco fazem quanto à regeneração dos biomas. Procura-se apenas mitigar os efeitos negativos da urbanização, considerados inevitáveis. A resposta geral para encaminhar essa mitigação é a chamada “Cidade Compacta”. No entanto, faz-se necessário um novo conjunto de tecnologias e estratégias urbanas para que a humanidade consiga reparar os graves e extensos danos causados à natureza. 

Por outro lado, vemos surgir um importante repertório tecnológico baseado em “sistemas distribuídos”, cujo desempenho não requer concentração territorial: tecnologias como a biodigestão de efluentes humanos, a cogeração de energia em smart grids, a telecomunicação pessoal popularizada, a agricultura urbana, Blockchain e open banking, dentre muitos outros. Um repertório que questiona uma das características mais aceitas da cidade: que ela é necessariamente um fenômeno concentrado no território, sinônimo de alta densidade populacional.

Há anos, proponho que esse repertório é fundamental para a emergência de um novo modelo de urbanidade: a Cidade Distribuída, espalhada pela paisagem em zonas de densidade variável, baseada em infraestrutura e equipamentos capazes de prover uma rica vida urbana sem o impacto ambiental tradicionalmente associado às cidades.

Um novo repertório urbano oriundo da ancestralidade, da agroecologia e da agricultura urbana.

Os ecologistas sabem que, durante a maior parte da história da humanidade, nossa relação com a natureza foi mutuamente benéfica. Isso mudou apenas com a industrialização e a hipertrofia das cidades tradicionais.

Provavelmente, o exemplo mais evidente e importante dessa relação simbiótica foi a “construção” da Floresta Amazônica. A fenomenal biodiversidade da Amazônia é, em parte, devida ao solo fértil denominado “Terra Preta”, de origem humana e gradualmente “fabricado” ao longo de 9.000 anos de assentamentos pré-colombianos. Os habitantes da Bacia Amazônica desenvolveram um modo de viver em simbiose com a natureza em vastos assentamentos de baixa e média densidade espalhados por toda a região, chegando a acolher cerca de 40 milhões de habitantes, segundo algumas estimativas. A chegada dos colonizadores europeus trouxe doenças para as quais os nativos não tinham imunidade, dizimando essa população. Tais assentamentos são intensamente estudados por arqueólogos, dentre outros, Eduardo Góes Neves, recompondo a narrativa esquecida da construção desse imenso “jardim comestível” e provedor de serviços ambientais fundamentais.

É uma falácia que assentamentos humanos são necessariamente nocivos ao meio ambiente: a urbanidade pode ser regenerativa, caso ela dialogue de modo flexível e produtivo com os biomas. Em parte, esse diálogo se funda na superação da segregação entre natureza e urbanidade: o perímetro urbano, que separa a zona rural da zona urbana, seria abolido, promovendo-se a interpenetração da infraestrutura urbana e a “infraestrutura natural”. Deste modo, os “serviços ambientais” – captura de carbono por meio do crescimento vegetal, produção de água limpa, manutenção da biodiversidade e de modos de vida tradicionais, segurança alimentar, etc. – seriam parte integral do ambiente urbano.

Um segundo exemplo é a constatação de que uma parte considerável dos alimentos que se consome em uma metrópole como São Paulo é proveniente do próprio tecido esgarçado da Macro-Metrópole Paulista. Essa constatação confirma a tendência crucial da “agricultura urbana”, e é fruto de um estudo coordenado por Fernando de Mello Franco, que foi secretário de desenvolvimento urbano de São Paulo.

É provável que o caminho para uma urbanidade regenerativa seja reimaginar as metrópoles com regiões de alta, média e baixa densidade, sendo que essas duas últimas consistirão em um novo tipo de contexto urbano: um tecido urbano esgarçado, aberto, que já foi denominado “disperso”, por Nestor Goulart, ex-diretor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP.

Cidades são “Monocultura de Gente”.

Se criticamos a solução genérica da monocultura na produção de alimentos, vendo a franca disseminação de práticas agroecológicas rumo à segurança alimentar, porque aceitamos que a cidade seja “monocultura de gente”?

Como nas monoculturas agrícolas, há uma única espécie hiperdominante nas cidades: seres humanos. Há também outras espécies oportunistas que se aproveitam da hiper-disponibilidade de gente: uma monocultura secundária de ratos, pombos, baratas e outras espécies. Destas, as mais importantes são as populações de vírus e bactérias: usam a vasta massa de seres humanos que vivem em proximidade para promover sua multiplicação e mutação genética. 

Do mesmo modo que a monocultura de milho, por exemplo, promove a proliferação de super-pragas, as pragas humanas se proliferam na monocultura de gente em cepas quase invulneráveis. A COVID é apenas o exemplo mais recente e impactante de um problema que tende piorar nos próximos anos caso o metabolismo coletivo humano não seja “acalmado” por meio de uma transformação regenerativa das cidades. A telecomunicação cumpre um papel importante na redução da intensidade do contato humano – substituindo o convívio repetitivo e de baixo valor social por convenientes teleconferências. Mas podemos ir além.

Para que as cidades deixem de ser monocultura de gente, precisamos coabitar o território com um bioma diverso, composto por centenas ou milhares de outras espécies. A permacultura, e outras variações de abordagens da agroecologia, opera por meio do desenho de simbioses entre as espécies que compõem uma agrofloresta. Do mesmo modo, o urbanista poderia imaginar novos arranjos urbanos baseados na simbiose cidade/natureza, talvez operar mais como um “jardineiro”, encarando a cidade não como uma selva de pedra, e sim uma exuberante floresta que também acolhe a parafernália arquitetônica de seus habitantes humanos.

A Cidade Distribuída é a evolução da Cidade Compacta.

Pode parecer que os argumentos deste artigo são contrários aos princípios da chamada “Cidade Compacta”. Trata-se do contrário: a própria rede de equipamentos urbanos que criam as condições para uma “cidade caminhável de 15 minutos” – escolas, locais de trabalho e moradia, postos de saúde, entretenimento e esportes, etc. –, compõem uma rede distribuída espalhada pelo tecido urbano que faz desse modelo urbano um precursor da Cidade Distribuída.

Muitos acreditam que a Cidade Compacta é sinônimo de alta densidade delimitada pelo perímetro urbano. No entanto, a cidade compacta não é incompatível com a baixa ou média densidade. Ela contradiz o subúrbio norte-americano e o “urbanismo de condomínio” brasileiro: o espraiamento da cidade tradicional é incompatível com um futuro sustentável ou regenerativo porque ela depende de uma infraestrutura centralizada e inflexível, e se baseia na mobilidade sobre pneus, no movimento pendular casa-trabalho. A vida comunitária é paupérrima ou inexistente, sem qualquer gestão da vida coletiva capaz de construir comunidades.

A proliferação da cidade de condomínio em um contexto de “êxodo urbano” pós-pandêmico seria uma afronta à ecologia e à vida urbana: um desastre ecológico ainda maior do que temos hoje, “esticando” a infraestrutura tradicional centralizada, que só tem eficiência quando concentrada no território.

Por outro lado, a Cidade Distribuída pode ser um caminho para a regeneração de nossa relação com o ecossistema planetário: nela, a vida em tecidos de média e baixa densidade será parte de um novo modelo de urbanidade em simbiose com a natureza, baseada em infraestrutura distribuída, somando vida comunitária e cultura metropolitana.

As ideias e opiniões expressas no artigo são de exclusiva responsabilidade do autor, não refletindo, necessariamente, as opiniões do Connected Smart Cities  

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