Desenvolvimentos como iluminação elétrica, transporte motorizado e cadeias logísticas avançadas fortalecem ainda mais a falsa ideia de que o ambiente urbano pode funcionar de modo independente do ecossistema planetário.
Nossas cidades são, em geral, concebidas como isoladas do ecossistema planetário: imaginamos que o ambiente urbano possa funcionar de modo autônomo, como se não fizesse parte do ambiente natural em que se assenta. Explicando melhor: todos os seres vivos deste planeta, incluindo seres humanos, fazem parte de uma complexa rede de relações que se sustentam mutuamente. Como diriam os biólogos, vivemos em um “planeta simbiótico”: o subproduto do metabolismo de um ser vivo é a fonte de nutrientes para outro ser vivo. Sem participar dessas relações, nós morreríamos. No entanto, muito das práticas do urbanismo ignoram essa rede de relações, construindo uma infraestrutura nociva a ela.
Como são comuns estratégias construtivas como a casa isolada no terreno, nenhum diálogo com seu entorno, lacrando seus habitantes em uma couraça de concreto, ou ainda os projetos de desenvolvimento urbano denominados “green field”, em que a primeira ação é devastar o bioma para plantar grama, arrancando a primeira camada do solo, a flora e a fauna nativa! Desenvolvimentos como iluminação elétrica, transporte motorizado e cadeias logísticas avançadas fortalecem ainda mais a falsa ideia de que o ambiente humano pode funcionar de modo autônomo.
A simbiose é inevitável, senão, morremos sufocados, insolados, afogados, de sede ou inanição, etc. No entanto, ela não acontece a partir dos nossos esforços construtivos, mas quase que a despeito deles.
Especificamente no Brasil e em outros países coloniais, temos um problema adicional: países colonizados herdam uma imagem de cidade que não é compatível com seus biomas. Vivemos em cidades que funcionariam relativamente bem em um bioma temperado e seco, mas a maior parte da população brasileira vive em biomas tropicais e úmidos – as regiões florestais da Mata Atlântica, da Amazônia e da Zona da Mata Nordestina. Em resumo: cidades temperadas em clima tropical.
Mesmo estando imersos em uma das regiões mais úmidas e férteis do mundo – capaz de sustentar uma biodiversidade enorme –, boa parte desses biomas foi devastada, destruída em nome do desenvolvimento econômico e urbano, dando lugar a um “gramado verde” que é gradualmente loteado e convertido em tecido urbano. Muitos de nós acreditam que não é possível outro modelo de urbanidade. É como se fosse inimaginável uma estratégia de urbanismo que parta do bioma existente para estabelecer simbioses explícitas e intencionais.
Ainda, herdamos uma arquitetura que é uma versão degradada de práticas europeias, especialmente quanto à nossa relação com nossos bioclimas: casas frias no inverno, quentes no verão, apartamentos que ignoram a insolação, verdadeiros fornos ou geladeiras, edifícios envidraçados como estufas verticais e que exigem refrigeração o ano todo, uma arquitetura vernacular moderna que é úmida e convida espécies oportunistas, como fungos (quase toda casa brasileira cheira a mofo). Como nossos invernos não são tão rigorosos, as soluções de conforto ambiental para o frio foram perdidas durante os séculos da colonização.
Quando olhamos para a arquitetura vernacular dos países europeus colonizadores, vemos que as soluções construtivas que temos aqui funcionam relativamente bem por lá. Mas, em nosso clima tropical úmido, são desastrosas.
Por outro lado, quando olhamos para a arquitetura vernacular das regiões tropicais e/ou úmidas, como Japão, Sudeste Asiático, Filipinas, Tailândia, Índia, dentre outros lugares, vemos que a tradição local é bem mais atenciosa quanto à relação dos edifícios com o sol, a água, os ventos, a topografia, a flora e a fauna locais do que a arquitetura vernacular dos países coloniais tropicais latino-americanos, especialmente o Brasil. Mesmo sendo colonizados, esses países do extremo oriente com um bioclima relativamente parecido com o nosso tiveram suas tradições construtivas preservadas. Sua história colonial foi diferente da nossa também porque já havia ali meios urbanos relativamente desenvolvidos, contando com tradições construtivas dotadas de características compatíveis com a urbanização colonial, como perenidade, densidade e controle de acesso.
As tradições construtivas do extremo oriente prevaleceram naquelas regiões até o início da industrialização da construção civil e da hiper-urbanização, em meados do século XX. Mas, hoje, até mesmo esses países adotam abordagens construtivas que são francamente opostas a uma boa relação com seus biomas locais.
Isso é expressão de um problema maior e mais amplo: de modo geral, a humanidade ignora os imperativos da rede de simbioses entre os biomas e as cidades. A consequência disso é a construção de um ambiente urbano insustentável e que ameaça a biodiversidade. A prática globalizada é a “terceirização” de nossos problemas para o meio-ambiente. Um exemplo: emissários poluindo o oceano profundo para preservar as praias dos balneários litorâneos.
A revolta dos rios urbanos.
Mas, ocasionalmente, esse movimento se volta contra nós. Como é o caso das enchentes sazonais dos grandes rios urbanos de São Paulo: o conjunto Tietê-Pinheiros é um sistema fluvial de várzea, que conta com processos naturais de assoreamento que são acelerados pela ocupação irregular do território. Para maximizar a área ocupável no entorno desses rios, o planejamento urbano paulistano optou por canalizá-los, soterrar a zona de alagamento sazonal, instalar um conjunto de represas e lagos de controle. Imaginava-se que esse sistema daria conta de disciplinar os rios de São Paulo, e criar uma vasta zona de ocupação de média e alta densidade. Essa imagem se preservou relativamente bem até meados da década de 1980, quando enchentes cada vez mais desastrosas demonstraram o absurdo de uma visão incompatível com um bioclima de alta pluviosidade e topografia única de rios caudalosos em uma condição geográfica inusitada: esse sistema flui para o interior do continente.
Esse tratamento desastroso seria compreensível se as características desse quadro fluvial fossem desconhecidas, ou que não houvesse conhecimento científico a seu respeito, ou sequer projetos urbanos que consideravam esse quadro. No entanto, Saturnino de Brito considerou essas características abundantemente conhecidas e documentadas em sua proposta para o projeto de Melhoramentos do Rio Tietê, na década de 1920: esse projeto teria criado o maior parque urbano do mundo, dotado de uma configuração paisagística única. No entanto, foi ignorado em favor do plano de avenidas de Prestes Maia, com intervenção dos negócios imobiliários para maximizar a área de desenvolvimento urbano.
Essa situação – dramática em suas péssimas consequências para o bem-estar social, a economia urbana e o saneamento – é apenas o exemplo mais extremo e inadequado de uma prática amplamente adotada em rios urbanos em clima temperado, com relativo sucesso. Mas, mesmo naquele contexto, essa prática é altamente questionável. No contexto tropical, ela poderia ser considerada um crime ambiental.
Os modelos de urbanização mais amplamente aceitos no Brasil são, em sua maioria, importados de modo acrítico e com mínimas adaptações. Eles criam um meio urbano alienado de seu bioma, com graves consequências. Umas visíveis e reconhecidas, como as enchentes sazonais, outras ocultas e sutis, como a destruição da sociobiodiversidade no meio urbano: vivemos em uma monocultura de gente e seus simbiontes oportunistas (pragas e doenças crônicas). O que poderia parecer uma solução parcialmente bem sucedida no contexto das cidades temperadas revela-se um desastre nas cidades tropicais.
Colonização e decolonização do urbanismo
A tremenda dificuldade de propor-se um verdadeiro e legítimo “urbanismo tropical” tem origem em nosso hábito colonial de importar dos países colonizadores os modos de organizar a sociedade, a economia e o território, que são aqui implantados como sinônimo de “civilização”: crença extremamente problemática, quase nunca questionada.
O desastre ecológico do urbanismo brasileiro é fruto direto do processo colonial, e só vamos superá-lo quando desenvolvermos uma abordagem de desenvolvimento urbano que de fato dialogue de modo autônomo e original com as características de nosso bioma, em um contexto sócio-político decolonial ou pós-colonial.
Neste sentido, tenho defendido a tese de que precisamos abrir espaço nas cidades para que a natureza possa ocupar um lugar saudável e relevante no território urbano. Além disso, práticas de urbanização pautadas pela devastação de biomas – como a famigerada prática de “limpar o terreno”, que consiste na destruição do bioma local, plantando-se gramíneas ou pasto – precisam ser substituídas por práticas pautadas pelo desenho de parcerias entre construções (o “artificial”) e seres vivos do bioma pré-existente (o “natural”). Ainda mais quando precisamos reintroduzir espécies do bioma local que foram erradicadas pelas práticas de desenvolvimento territorial que precedem a urbanização de alta densidade, como na construção das paisagens produtivas da agricultura intensiva, das pastagens de pecuária, ou seja, pela gestão colonial do território.
Acredito que, em um futuro sustentável, a paisagem urbana será caracterizada pela presença de infraestrutura artificial complexa e de alto desempenho, entremeada por densas e saudáveis florestas – a “infraestrutura natural” – em uma parceria profunda e de longo prazo entre a humanidade e o ecossistema.
É provável que essa seja a maior contribuição brasileira ao urbanismo de uma cultura global que será sustentável e regenerativa. O Brasil tem a chance, hoje, de ser um líder mundial em desenvolvimento urbano sustentável. Mas não faremos isso importando métodos, métricas e sistemas de pensamento dos países ditos “desenvolvidos”: eles próprios têm uma história de devastação ambiental que criou a ideia de civilização urbana que é o maior obstáculo para a criação de um modelo verdadeiramente sustentável de urbanismo.
O futuro regenerativo das cidades
O urbanismo temperado, em sua origem, não é um estrondoso sucesso socioambiental. Inclusive, podemos resumir a história das desavenças entre humanidade e meio-ambiente como a história do urbanismo eurocêntrico: desde a literal insustentabilidade de Veneza que afunda em sua infraestrutura primitiva, até a devastação do bioma europeu pela mão do desenvolvimento econômico ocidental, passando pela escassez de água nas cidades do sul da Califórnia, pela extinção de espécies induzida pela deterioração de biomas na implantação de tecido urbano em todo o mundo. São abundantes e redundantes os exemplos da destruição do meio-ambiente causada pelo choque entre desenvolvimento urbano e biomas.
Um estudo recente apresenta um panorama da relação entre humanidade e meio-ambiente ao longo dos últimos 12 mil anos. Sua decisiva contribuição foi demonstrar que, durante a maior parte desse tempo, nossa relação com o ecossistema planetário foi mutuamente benéfica, em alguns casos contribuindo para o incremento da biodiversidade de determinadas regiões – como no caso da “Terra Preta” da Amazônia. Foi apenas a partir da Revolução Industrial que passamos a sistematicamente devastar o meio-ambiente.
A cidade se tornou um sistema de isolamento e segregação socioambiental: criamos compartimentos nos quais apenas algumas poucas pessoas e espécies de seres vivos podem entrar, e achamos que isso é “boa gestão territorial”. Sob a égide dos cânones do urbanismo europeu do século XIX – baseado na oferta de habitação, educação, saúde e entretenimento para uma massa de operários – criamos uma cidade que não apenas não dialoga com o bioma no qual está inserida, como promove a ilusão que a humanidade controla esse bioma, ditando seu futuro. Não apenas não somos capazes de controlar o meio-ambiente, como nossa relação contenciosa com ele que pode terminar em desastre.
A ecologia é uma ciência relativamente nova, e sua contribuição para o urbanismo é ainda mais incipiente: a compreensão dessa “rede simbiótica” que sustenta nossas próprias vidas é ainda muito rudimentar. No entanto, já sabemos o suficiente para ter certeza que muito do que consideramos “normal” na vida urbana atual é incompatível tanto com um futuro sustentável e com a necessária regeneração dos biomas devastados pela implantação da rede urbana global.
Acredito que o ponto fundamental dessa transformação é uma mudança de percepção quanto à essência do meio urbano: precisamos abandonar a absurda ideia de autossuficiência das construções humanas, e passar a projetar simbioses, compreender que todo e qualquer modo de vida é fundamentado em estabelecer relações de apoio mútuo entre diferentes espécies. A chamada “mínima intervenção” – abordagem recorrente em ecologia – só pode existir se for baseada em processos pré-existentes no ecossistema vivo do planeta.
Com exceção de minérios, todo ar que respiramos, toda comida, todo recurso material é provido por seres vivos, direta ou indiretamente. Uma cidade sustentável é uma cidade simbiótica, e não uma construção autossuficiente.
Não existe arquitetura que funcione por conta própria para nos sustentar nesse planeta. Sempre precisamos do bioma. Como um médico, que não cura um paciente, como num passe de mágica, mas sim faz intervenções decisivas para que o corpo do paciente possa curar a si mesmo, também a arquitetura e o urbanismo devem fazer intervenções sobre um bioma pré-existente, criando condições de habitabilidade: participar da rede de forças vitais que nos sustentam no ecossistema planetário.
Não é a cidade que nos sustenta, é a cidade em relação ao ecossistema que nos sustenta. Não é a arquitetura que é habitável, e sim é a arquitetura que media nossa relação com um bioma que nos fornece as condições de habitabilidade. Nada mais. Nossos artefatos habitáveis (a cidade, a arquitetura) são ferramentas de ajuste ambiental, e não espaçonaves capazes de sustentar a vida no vácuo interestelar. Como diria Buckminster Fuller, a espaçonave é o planeta inteiro.
As ideias e opiniões expressas no artigo são de exclusiva responsabilidade do autor, não refletindo, necessariamente, as opiniões do Connected Smart Cities