A cidade do futuro será “outra entidade” muito diferente daquela com a qual nos acostumamos, durante esse brevíssimo período da Civilização Ocidental.
Mudança Climática e seu Impacto sobre as Cidades
Com estarrecimento e pavor, vimos as enchentes do Rio Grande do Sul e da Região Metropolitana de Porto Alegre. Mas, muitos de nós sabiam que algo assim estava por acontecer – a surpresa foi quanto ao lugar, em específico, em que se deu a catástrofe: de Veneza a Londres, passando por Belém e Nova York, imaginava-se que muitas outras regiões metropolitanas poderiam ser inundadas devido às mudanças climáticas. Qual seria a primeira a soar o “alerta global” da transformação do clima?
Durante décadas, a gestão urbana vinha esquecendo de que a gestão das águas é um dos aspectos fundamentais da vida urbana. Em Rio Grande do Sul e Porto Alegre, vimos o resultado de uma perigosa confluência entre descaso público e falta de visão de longo prazo, que ignorou os perigos de um imprevisível clima em transformação.
No entanto, podemos esperar as mesmas cenas de inundação em praticamente todas as metrópoles costeiras do mundo: devido ao aquecimento global e a consequente deglaciação do planeta, prevê-se que o nível dos oceanos poderá subir até dois metros até o fim do século, com possibilidade dessa marca ser atingida antes do tempo. No entanto, como tudo que se relaciona com ciência ambiental, climatologia, transformações do ambiente e do clima, esse número isolado diz pouco sobre o impacto que as transformações climáticas e ambientais terão sobre as cidades e a vida das pessoas. O efeito das marés, das variações de nível dos rios e lagos, assim como eventos “episódicos” (raros) tornando-se comuns – furacões, tornados, chuvas torrenciais e ventos extremos – sobre o meio-ambiente e cidades é complexo e imprevisível: como pensar e construir cidades para esse novo contexto?
Já estamos vendo uma onda de eventos climáticos “anormais” mundo afora. De Dubai a Suíça, chuvas torrenciais e deslizamentos de terra e rochas devastam regiões urbanas inteiras. O impacto sobre a economia é enorme e difícil de mensurar. O efeito sobre as cidades é catastrófico: a destruição de modos de vida e, potencialmente, colapso sócio-econômico.
Uma Visão para o Futuro Urbano
Tive a oportunidade de participar do 3o Encontro Cidades da Amazônia e do Brasil, realizado em Belém pelo Laboratório da Cidade, parceiros públicos e privados. Três assuntos foram o núcleo das discussões: as “Cidades Ancestrais” da Amazônia pré-colonial, os preparativos para a COP 30 e as Ações de Mitigação para a Mudança Climática. Esses três assuntos estão mais entrelaçados entre si do que pode parecer. Vejamos porque.
Está se formando o consenso de que a meta do Acordo de Paris – o limite de aumento de 1,5oC da temperatura média planetária – não será respeitada, e os ambientalistas já estão ponderando a respeito das ações de mitigação da transformação do clima nas cidades, economia e sociedade. Ou seja, não precisamos apenas lutar contra a mudança climática, e sim trabalhar para reconstruir as cidades para que possamos sobreviver à transformação do clima e do meio ambiente planetário. Porque, de fato, não se trata de pequenas e modestas transformações que serão necessárias para um futuro urbano “viável” neste novo contexto posterior à mudança climática: será preciso reinventar as cidades para que possamos viver de modo sustentável e regenerativo.
A ciência vem nos mostrando que as cidades do passado foram coisas muito diferentes do que fomos capazes de imaginar: a arqueologia da Bacia Amazônica nos mostra que houve um tipo muito peculiar de urbanização naquela região, e provavelmente algo muito parecido aconteceu em todo o continente americano antes da colonização: as “Cidades Ancestrais” da Amazônia eram uma incrível articulação de assentamentos humanos e enormes “jardins comestíveis”. De fato, uma gigantesca “cidade agroflorestal” se estendia por toda a Bacia Amazônica, possivelmente sustentando uma população de 50 milhões de pessoas, maior do que a população amazônica atual de 38 milhões. Essa população desapareceu quase que por completo, restando apenas as populações tribais que hoje habitam a região. A “Urbanidade Simbiótica” da Amazônia caiu no esquecimento, até ser reencontrada pela arqueologia.
Belém irá sediar a COP 30. Para tanto, profundas transformações urbanas deverão ser realizadas para que a cidade possa receber o enorme número de delegações. Como podemos garantir que essas transformações não apenas cumpram sua função em tornar Belém a sede deste evento, como também sirvam ao desenvolvimento urbano futuro da cidade, inclusive de modo compatível com as transformações urbanas necessárias para acomodar a mudança climática? Será que a infra-estrutura urbana de Belém deveria ser ampliada por meio de uma “cidade flutuante”? Ou, então, será que o exemplo de Afuá – município de Marajó inteiramente composto por palafitas, com um tecido urbano suspenso sobre a floresta alagadiça, toda servida por mobilidade ativa – será fundamental para uma “outra Belém”?
Os três assuntos falam de uma mesma coisa:
As cidades do futuro NÃO serão parecidas com as cidades de hoje
As cidades do passado tinham características – forma, composição, dinâmicas territorial e populacional, economia e formas de relação entre humanidade e natureza – completamente diferentes das cidades de hoje. Precisamos ter coragem, visão e criatividade para imaginar e realizar cidades que serão completamente diferentes das cidades de hoje.
Para que as cidades do futuro sejam verdadeiramente sustentáveis e regenerativas, devemos conceber sistemas urbanos muitíssimo diferentes das cidades de hoje: o que achamos “normal e necessário”, hoje, provavelmente será visto como “antiquado e sem sentido”, no futuro.
As ações de mitigação da mudança climática vão garantir isso: sob violenta pressão da natureza, teremos que rever e reinventar praticamente todos os aspectos das cidades atuais – da tecnologia construtiva às redes de energia, do saneamento básico à produção de alimentos, da relação entre mobilidade urbana e vida profissional, etc. A cidade do futuro será “outra entidade” muito diferente daquela com a qual nos acostumamos, durante esse brevíssimo período da Civilização Ocidental.
Inovação para o passado, presente e futuro.
Ao longo da história, a inovação urbana tende a ser uma ação reativa: as transformações da cidade começavam na tecnologia, na indústria, na política internacional, na guerra, etc. e os urbanistas “corriam atrás” para adequar-se a essas mudanças. Muitas vezes apenas confirmando transformações já ocorridas, as codificando em uma linguagem acessível ao planejamento urbano.
Inovações como o automóvel, o telefone e as telecomunicações, a computação e os sistemas da informação, a automação industrial, do comércio e dos serviços, dentre outros, moldaram as cidades de hoje. Urbanistas, arquitetos, engenheiros e geógrafos, assim como empreendedores imobiliários, meramente reagiam a essas mudanças, com quase nenhuma autonomia, criatividade e liderança. A forma urbana foi uma reação às mudanças trazidas por essas inovações.
O resultado é esse meio urbano caótico, confuso, sem identidade (genérico, anódino e desorientado), injusto e incompatível com o meio-ambiente e os biomas. Achamos ele normal porque ali nascemos e vivemos. Mas trata-se de uma urbanidade de baixa qualidade, mesmo nos bairros “abastados” e nas regiões urbanas “de referência”: quase nenhuma relação com o bioma local, baixo conforto ambiental, desperdício da insolação (ou desconforto por ela causado), alta suscetibilidade às inundações sazonais, exclusão da biodiversidade – uma monocultura de gente desorientada e infeliz.
Nessa próxima onda de inovações, que necessariamente virá, há a possibilidade de reinventarmos as cidades para não apenas lidar com a mudança climática, mas também prepará-las para um futuro mais justo, interessante, rico e benéfico para todos. Não apenas reagindo a pressões irresistíveis da indústria, do mercado, da geopolítica e, agora, do meio-ambiente.
Inovação Urbana envolve transformação cultural profunda
A inovação tende a transformar temas “comuns” e “imprescindíveis” em assuntos obsoletos e irrelevantes: qual foi a última vez que você escovou o seu cavalo? Raspou as solas de suas botas para tirar esterco acumulado em uma caminhada nas ruas? Buscou água em uma fonte pública? Essas atividades cotidianas em cidades do século XIX nos parecem absurdas. A mesma coisa se dará com outros hábitos e “necessidades” que vemos, hoje, como “imprescindíveis”.
Vejamos alguns exemplos: o sistema de esgoto seria obsoleto em uma cidade na qual o saneamento básico é resolvido por biodigestores dentro do lote urbano. Sistemas de coleta sanitária de lixo orgânico seriam desnecessários se todos os condomínios fossem equipados com galinheiros, dando conta de praticamente todo resíduo orgânico e, ainda, ofertando uma abundante produção local de ovos. Agroflorestas urbanas poderiam dar conta da maior parte da alimentação da população das cidades, convidando a uma completa reinvenção das cadeias de produção e varejo de alimentos.
Muitas outras inovações podem ser propostas, desenvolvidas e implementadas com a intenção de integrar melhor as necessidades dos cidadãos e do meio-ambiente.
Esse movimento de obsolescência já está acontecendo
Com a ampla disseminação da mobilidade urbana como serviço, a posse de carro está ficando obsoleta – como será uma cidade sem motoristas, baseada em uma rede de mobilidade urbana baseada em modalidades integradas? Edifícios de escritórios estão sendo substituídos pelo trabalho remoto – o que fazer com o vasto patrimônio construído das cidades contemporâneas?
Mas, podemos ir adiante, e nos dedicar a repensar aspectos “normalizados” da incompatibilidade entre as cidades brasileiras e o bioma tropical. Nossos edifícios e casas são máquinas de concentração de calor, no verão, e verdadeiras geladeiras, no inverno: como será concebido e implementado o vasto e necessário retrofit desse patrimônio construído incompatível com nossas necessidades bioclimáticas? Como seria um edifício que coleta energia do sol, e a utiliza para prover conforto ambiental em um clima tropical?
É impressionante como as cidades brasileiras lidam mal com o que temos de mais abundante: sol, chuva e vento.
Inovar é imaginar futuros com rigor e coragem
Há uma crise de imaginário no mundo contemporâneo: como se a enorme oferta de informação causasse paralisia e estupefação, no lugar de encantar e convidar à criatividade. De modo geral, ainda estamos tentando propagar para o futuro o modelo de urbanidade que provou-se incompatível com o meio-ambiente planetário. Quanto poderíamos e deveríamos imaginar um outro futuro para as cidades.
A mudança climática nos obriga a rever e superar a forma urbana que herdamos: tanto ela não é compatível com nosso bioma tropical, como não é compatível com o contexto ecossistêmico posterior à mudança climática. Estamos diante de uma oportunidade de transformar as cidades para um futuro sustentável e regenerativo.
Proponho que as cidades do futuro sejam vastas Agroflorestas Urbanas, nas quais a população humana viverá em simbiose com a biodiversidade dos biomas locais: ambientes urbano-florestais aos quais dedicamos ao meio-ambiente cuidados compatíveis com o que chamamos, hoje, de áreas de preservação. Ou seja, para que o futuro do “evento humano” seja sustentável e regenerativo, as áreas de preservação deverão ser a norma e não uma exceção. Provavelmente, a maior parte da população humana habitará essas áreas, e não as atuais “selvas de pedra”.
Sei que há uma enorme distância entre essa visão e o contexto urbano contemporâneo. E, de fato, esse novo modelo urbano ainda está em construção – não há qualquer consenso de como ele deverá ser planejado e implementado. Mas é uma visão que não exige a “demolição” das cidades atuais e sua “substituição” por outro tecido urbano. Trata-se da adaptação radical do patrimônio edificado atual, envolvendo sua transformação para que haja espaço no tecido urbano onde a natureza poderá re-ocupar e regenerar o bioma nativo das diversas regiões do planeta.
Mas todo projeto complexo e de grande envergadura pode ser implementado por meio de projetos parciais e incompletos, os quais gradualmente vão se articulando em uma transformação mais profunda. E isso envolve numerosas iniciativas de inovação urbana, para que esse novo modelo urbano possa emergir do esforço coletivo de criar-se novos hábitos, infra-estruturas, serviços e práticas urbanas.
Essa transformação já se iniciou, não estamos presos a um modelo urbano contemporâneo: nossas cidades já estão em transformação, e a mudança climática torna imperativa sua reinvenção mais radical. Mas, esse movimento precisa acontecer de modo mais acelerado e consequente, o que exige um maior engajamento das instituições, a flexibilização e a renovação dos paradigmas urbanísticos, e um sensível incremento de investimentos em ações de inovação urbana.
Quem inova para as cidades?
O momento da inovação urbana é agora. Ela é responsabilidade do governo, da academia e dos grandes empreendedores imobiliários: um novo modelo urbano precisará ser desenvolvido, a toque de caixa, e com a sustentação de grandes instituições e forças econômicas.
Por outro lado, qualquer grande corporação, instituição ou associação pode montar um laboratório de inovação urbana: todas as empresas e instituições – mesmo as que não são representantes do setor urbano-imobiliário – serão diretamente impactadas pela transformação urbana que se avizinha. Todos os grandes grupos sociais, econômicos e governamentais podem e devem ter um papel nessa reinvenção. A inovação urbana pode emergir de qualquer setor da sociedade. Que, nesse novo ciclo de inovação sustentável e regenerativa, os grandes movimentos de transformação da cidade não sejam apenas reativos, e sim orientados pela intenção de construir um meio urbano benéfico para todos.
As ideias e opiniões expressas no artigo são de exclusiva responsabilidade do autor, não refletindo, necessariamente, as opiniões do Connected Smart Cities