A inteligência artificial está prestes a remodelar a forma como estruturamos concessões e PPPs, e o setor precisa estar preparado para fazer as perguntas certas antes de buscar as respostas.
Nos últimos 20 anos, o desenvolvimento do mercado de infraestrutura no Brasil deu enormes passos. Sem sombra de dúvida, o setor privado teve amplo protagonismo nessa agenda. Em 2024, dos quase R$ 260 bilhões investidos em infraestrutura, mais de 80% vieram da iniciativa privada.
Nesse contexto, é natural que o ambiente de assessoria a projetos de infraestrutura também tenha sido impactado positivamente. Mais do que os seminários, cursos, MBAs e certificações no setor, foram a quantidade e diversidade de PPPs e concessões contratadas que nos levaram a um novo patamar. Outras centenas de iniciativas que não se concretizaram também trouxeram lições valiosas para o ambiente de estruturação de projetos.
Esse ecossistema de assessoria pode ser entendido como o conjunto de profissionais e entidades que atuam principalmente nas atividades de estruturação de projetos e apoio à licitação de desestatizações. A experiência adquirida com a maturidade do mercado de infraestrutura, aliada com os avanços tecnológicos dos últimos 25 anos, certamente trouxeram notórios ganhos de eficiência ao trabalho desses assessores.
Contudo, as metodologias e o modus operandi de estruturação de projetos permanecem, em grande medida, as mesmas das últimas décadas. A etapa de modelagem é permeada por extensos relatórios, planilhas, revisões e apresentações. Reuniões, sejam presenciais ou virtuais, são frequentes e geralmente envolvem dezenas de profissionais. As minutas de contratos elaborados também seguem uma mesma estrutura lógica, com formato, clausulas e anexos muito similares. O modelo de precificação também variou pouco. Em geral, são contratos de longo prazo, lastreados na projeção de um fluxo de caixa descontado a uma taxa de atratividade (WACC) cujo conceito foi criado há quase 70 anos, com aperfeiçoamentos na distante década de 90. As formas “aceitas” para determinar as premissas desses fluxos de caixa também não sofreram inovações significativas.
Entendo que o motivo principal para a manutenção dessas abordagens tradicionais está relacionado a uma certa aversão ao risco de inovação no complexo ambiente da infraestrutura, que celebra avanços a conta-gotas. Atualmente, as engrenagens necessárias à estruturação de projetos nunca estiveram tão alinhadas, corroboradas pelos seguintes fatores: avanços regulatórios, diversidade de entidades voltadas à modelagem de projetos, grande quantidade de consultorias especializadas, dezenas de programas e cursos de capacitação, inúmeras entidades setoriais convergindo para temas de interesse comum e uma ampla adoção de concessões e PPPs por estados, municípios e união.
Portanto, falar em “disrupção” na preparação, contratação e regulação de projetos de infraestrutura não gera o mesmo entusiasmo que em outros setores, como o mercado das big techs, por exemplo. Seria uma espécie de “não mexer no time que está ganhando” ou algo como “por quê reinventar a roda?”. É o mindset de quem não quer arriscar a implosão de tudo que foi aprendido e conquistado – com muito suor – ao longo das últimas décadas.
Compreensível, porém, insustentável. Estamos, agora, lidando com o impostergável. Com a chegada do uso em massa da Inteligência Artificial (IA), “reinventar a roda” torna-se inevitável. Com a imposição dessa realidade, será necessário redefinir a forma e os critérios para a estruturação de projetos e, posteriormente, recriar consenso entre as diversas partes intervenientes nesse processo. Mais do que arriscar prognósticos, me parece que o primeiro passo é antecipar perguntas que precisarão ser endereçadas num cenário iminente em que a IA será uma variável predominante e indissociável da estruturação de projetos. Nesse sentido, sem qualquer intenção de respondê-las, elenco algumas das questões que precisaremos enfrentar num futuro bastante próximo:
- Em que proporção a IA conseguirá reduzir os prazos de estruturação de projetos pelos consultores?
- Como a IA poderá contribuir para a redução dos prazos de validação externa e licitação dos projetos, que dependem predominantemente da administração pública e órgãos de controle? Qual será capacidade das entidades reguladoras em acompanharem o compasso da transformação do uso de IA na modelagem de projetos?
- Em que proporção a IA conseguirá reduzir o custo de estruturação dos projetos?
- Com a eventual redução dos custos e prazos de estruturação e licitação de projetos, em que medida haverá restrição de competição e capital disponível para absorver um maior número de oportunidades simultâneas no mercado?
- Até que ponto informações geradas por IA poderão ser consideradas como válidas ou como fonte fidedigna na modelagem de projetos?
- Modelos contratuais de tão longo prazo ainda serão a melhor alternativa?
- De que forma a IA transformará o mercado de capitais e o perfil de financiamento para projetos de infraestrutura?
- Como deverão ser medidos e compartilhados os ganhos de eficiência associados com a aplicação da IA nos serviços de infraestrutura?
- Como se transformarão as metodologias, procedimentos e prazos para reequilíbrio e revisão dos contratos?
- Em que medida os estruturadores públicos ou a própria administração pública direta passarão a absorver internamente (totalmente ou parcialmente) estudos que hoje são executados por consultorias? Em que medida, isso aumentaria a exposição de risco e o escrutínio junto a essas entidades?
- Quais passarão a ser as competências e áreas de conhecimento mais privilegiadas entre os profissionais que atuam na estruturação de concessões e PPPs?
- Como lidar com o trade off “muito conhecimento em IA com pouca experiência em infraestrutura versus “pouco conhecimento em IA com muita experiência em infraestrutura” na composição de equipes de estruturação de projetos?
- De que forma os critérios de seleção de consultorias serão afetados pelo uso da IA?
Qual o limite para o uso de agentes de IA na execução de atividades e na comunicação com interlocutores do projeto? - De que forma os processos de participação social podem ser aperfeiçoados pela IA oferecendo mais possibilidades de manifestação e, ao mesmo tempo, evitando que a tecnologia seja usada como ferramenta oportunista para gerar desgastes ao processo licitatório?
Essa são apenas algumas das perguntas inquietantes que revelam o conjunto avassalador de incertezas provocadas pela inadiável ampliação do uso da Inteligência Artificial no universo de estruturação de projetos de infraestrutura. Por essa razão, proponho deixarmos de olhar o caminho trilhado nos últimos 20 anos como proxy do futuro – para o bem e para mal. Estamos diante de uma transformação sem precedentes na qual teremos que aprender a lidar com constantes volatilidades e desafios. Por outro lado, a boa notícia é que a própria IA será facilitadora das soluções e oportunidades para lidar com as perguntas que continuarão tirando nosso sono.
As ideias e opiniões expressas no artigo são de exclusiva responsabilidade do autor, não refletindo, necessariamente, as opiniões do Connected Smart Cities.