As PPPs no Brasil beberam muito na fonte da experiência britânica da década de 90, tendo como principal inspiração os modelos de PFI (Private Finance Initiative)
Por uma oportuna coincidência, o surgimento das Parceria Público-Privadas (PPPs) no Brasil coincidiu com o estágio inicial de minha carreira profissional, quando tive a oportunidade de testemunhar alguns dos bastidores e discussões que culminaram na Lei Federal 11.079, de 30 de dezembro de 2004.
Poucos sabem, mas em dezembro de 2023, o Estado de Minas Gerais já havia tramitado sua própria legislação estadual de PPPs (Lei 14.868/03), posteriormente revogada em função da aprovação da legislação federal. Foi nesse contexto que, em fevereiro de 2004, integrei a Unidade PPP do Estado de Minas Gerais, tendo a missão de apoiar a estruturação do Programa Estadual de PPPs.
Em razão disso, esse período foi de intensa interação com representantes da iniciativa privada, de organismos multilaterais, do Governo Federal e de outros estados, que enxergavam a pauta das PPPs como uma ferramenta para enfrentar os enormes gaps de infraestrutura no país. Para alguns gestores públicos, tratava-se meramente de uma legislação oportuna que permitiria alavancar investimentos privados e desonerar gastos públicos no curto prazo. Já para outra parcela mais “antenada” dos administradores públicos, além do oportunismo fiscal, a inovação dos contratos de PPPs, que induziam a uma maior eficiência e melhoria da governança na relação público-privada, era percebida como um game changer para a eficiência da administração pública e para impulsionar o desenvolvimento econômico e social do país.
As PPPs no Brasil beberam muito na fonte da experiência britânica da década de 90, tendo como principal inspiração os modelos de PFI (Private Finance Initiative). O começo da década de 2000 foi um período intenso de intercâmbio do governo brasileiro com o governo britânico, tendo sido realizadas diversas missões internacionais para capturar as lições aprendidas da experiência internacional. Esse movimento fez bastante sentido à época, um período em que as PPPs no Reino Unido combinavam anos de experiência acumulada na gestão contratual com um pipeline relevante de novos projetos. Nesse período, o Chile era a principal referência para o mercado de PPPs na América Latina, tendo em vista seu maior grau de maturidade institucional e seu mercado financeiro mais desenvolvido.
Ao me distanciar dessa época e observar hoje, em 2025, como o cenário das PPPs evoluiu, cabem algumas reflexões. Primeiramente, devo logo dizer que o saldo é bastante positivo e por isso concentrarei inicialmente em fundamentar essa percepção. Em seguida, como não poderia deixar de ser, comentarei alguns aspectos que, a meu ver, ainda inibem o atingimento da maturidade das PPPs no país.
Apesar desse artigo fazer referência aos 20 anos da Lei das PPPs, é fundamental também reconhecermos o impacto dessa legislação em contratos de concessão comum, no ambiente de contratações públicas e no próprio ecossistema do mercado de infraestrutura. Para fins de simplificação, daqui em diante, não pretendo distinguir as concessões comuns das Parcerias Público-Privadas, tratando todas as modalidades sob o gênero de “parcerias” ou mesmo de “PPPs”.
Sem dúvida, uma das conquistas das PPPs ao longo desses anos foi a descontaminação ideológica da discussão sobre participação privada na infraestrutura, dando lugar a uma percepção de que essa modalidade de contratação é uma moderna e pragmática ferramenta de gestão pública municipal, estadual e federal. A diversidade de correntes políticas que já adotaram as parcerias em seus territórios acabou por desidratar críticas ideológicas, que eram comuns na primeira década desse milênio.
Outro aspecto importante, impulsionado pelo marco legal das PPPs, foi o fomento a uma cultura de diálogo transparente entre os agentes públicos e privados, em especial junto ao legislativo e ao executivo. A Lei Federal 11.079/04 foi amplamente discutida com gestores públicos, administrativistas, investidores, financiadores e operadores de infraestrutura, criando um precedente importante. Desde então, observa-se um esforço contínuo desse diálogo em diversas iniciativas regulatórias no campo da infraestrutura (legislações setoriais, implantação de instrumentos financeiros, modernizações normativas, dentre outros). Em um passado distante, qualquer menção a um diálogo convergente de interesses públicos e privados era percebido com desconfiança, como uma afronta a princípios morais.
Um dos maiores destaques do programa de parcerias no Brasil se relaciona com o volume de projetos já contratados. Nesse contexto, é notório também a diversidade de setores que foram contemplados com contratos de parceria. O cardápio é vasto: desde setores clássicos da infraestrutura econômica (rodovias, portos, aeroportos, metrô), passando por serviços urbanos (iluminação pública, funerários/cemiteriais, saneamento) até a infraestrutura social (habitação, saúde, educação). Não resta dúvida que o Brasil é hoje o país que testou – e segue testando – PPPs em um maior número de segmentos. Precisamos reconhecer que somos inventivos.
Desde a década de 90, quando surgiram as primeiras concessões, o Brasil já celebrou cerca de 1.300 contratos de parceria. Para se ter a dimensão desse universo, são mais contratos do que a soma de todas as PPPs celebradas no Reino Unido, Canadá e Australia, países tidos como referências desde a década de 90. O Chile, benchmark na América do Sul, celebrou pouco mais de 110 contratos de parceria em sua história.
O Infrascope, publicação periódica da Economist Impact em parceria com o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), mede a capacidade dos países na América Latina e Caribe para implementarem PPPs de forma eficiente. A 1ª edição do estudo, lançado em 2009, apontava o Brasil em 3º lugar (atrás de Chile e Peru) com uma pontuação de 57,8, o que colocava o país na categoria “emergente” em relação a capacidade de realizar PPPs. Nos anos seguintes, o Brasil chegou a cair para a 7ª posição e, a partir de 2021/2022, teve sua pontuação elevada consideravelmente até assumir a liderança do ranking. Na última edição do Infrascope (2023/2024), o país ocupou a 1ª colocação, com 77,9 pontos, que o qualifica na categoria “desenvolvido”, já muito próximo da categoria “maduro”.
Certamente, essa condição não foi atingida sem a “dor” da intensa experimentação (por vezes desajuizada) das PPPs durante esses 20 anos, com vários acertos, mas também inúmeros equívocos. Apesar dessa trajetória tortuosa e sem prejuízo dos diversos aprimoramentos ainda necessários em nosso ambiente, os avanços observados nesse período levaram o país a uma clara posição exportadora de conhecimento sobre PPPs.
Olhando pelo retrovisor, é possível observar que foram endereçados alguns dos seus problemas estruturais na concepção dos projetos. Um exemplo é o surgimento de diversos estruturadores de projetos (facilities) nos últimos anos. Ao mesmo tempo, como consequência, vimos uma redução da dependência excessiva dos Procedimentos de Manifestação de Interesse (PMIs), com um consequentemente aumento da taxa de conversão de projetos modelados em contratos.
Por fim, um outro avanço recente diz respeito ao desenvolvimento de instrumentos financeiros para financiar projetos de infraestrutura, uma pauta antiga desse mercado. Apesar da Lei Federal 12.431, que criou as debêntures incentivadas de infraestrutura, ter sido publicada em 2011, somente nos últimos anos tivemos a consolidação desse mecanismo de financiamento. Desde 2019, essas debêntures já responderam por uma captação superior a R$ 250 bilhões. De forma complementar, em 2024 foi instituída, por meio da Lei 14.801, a figura da debênture de infraestrutura.
Sem intenção de tolher o espírito comemorativo do aniversário da lei das PPPs, entendo que deve haver espaço também para uma autocrítica construtiva do nosso cenário das parcerias.
Um primeiro aspecto que pretendo ressaltar é a tendência de se fomentarem virtuosismos desnecessários nas modelagens de projetos. Sob o argumento de se buscar inovação, criamos sofisticações e complexidades, por vezes dispensáveis, deixando de privilegiar simplificação e uniformização de modelos de licitação e contratos de parceria. Mesmo em setores com menor complexidade, encontramos diversos padrões contratuais, a depender do autor da modelagem. É salutar que se persigam as melhores práticas de estruturação de projetos, mas PPPs não podem ser vistas como peças artesanais. Precisamos desapegar da autoralidade dos projetos em favor de uma lógica de ganho de escala industrial. Estaremos mais próximos de um mercado mais maduro de PPPs à medida que se reduzam as tipologias de contratos e os custos de transação, aplicando-se simplificações inteligentes.
Nessa mesma linha, ao que parece ser também um elemento da “cultura” do nosso ambiente institucional, pairam certas “nuvens negras” sobre nosso arcabouço jurídico-regulatório. Mesmo quando o país viabiliza reformas estruturantes importantes para o universo da infraestrutura (a exemplo do Marco Legal do Saneamento), em pouco tempo surgem novas legislações, excepcionalidades ou decisões judiciais que vão na contramão da reforma originalmente pretendida. Numa outra dimensão, temas já pacificados são subitamente revertidos e acabam por gerar insegurança jurídica. Outra característica marcante é a incapacidade de se deixarem assentar decisões jurídicas proferidas, resultando num loop constante de reciclagem dos mesmos temas nas agendas regulatórias.
Por fim, é preciso alertar para o risco fiscal que os contratos de concessão patrocinada e administrativa (PPPs no sentido estrito) carregam. Os registros dos passivos dessas PPPs na contabilidade pública parece ser um tema que a maior parte dos gestores públicos tem preferido não endereçar. Em um país que celebra PPPs em larga escala, ignorar esse tema trará repercussões graves no longo prazo. A experiência internacional já demonstrou que, mesmo países que tiveram razoável confiabilidade em seus registros contábeis, sofreram com o alto estoque de dívidas advindas dos contratos de PPP. No Brasil, é preocupante o fato de sequer termos visibilidade dos impactos contábeis que as PPPs estão gerando.
Fazendo um balanço desses 20 anos, devo dizer que o início das PPPs foi marcado por entusiasmo e esperança em reduzir o gap de infraestrutura e em melhorar a qualidade dos serviços públicos no Brasil. Hoje, visto os resultados concretos das parcerias para a sociedade, a esperança se tornou, no bom sentido, dispensável. Sigamos, portanto, com entusiasmo nessa trajetória ascendente.
As ideias e opiniões expressas no artigo são de exclusiva responsabilidade do autor, não refletindo, necessariamente, as opiniões do Connected Smart Cities.
Formado pela PUC-Minas em Administração. Tem pós-graduação em marketing pela Fundação Dom Cabral (FDC), em finanças pelo IBMEC, extensão em parcerias público-privadas pela Partnerships UK, além de ter participado da EY Harvard Leadership Program. Gusmão trabalha na EY desde agosto de 2007 e hoje atua como sócio na área de infraestrutura, além de ser coordenador do Comitê de Iluminação Pública da ABDIB (Associação Brasileira da Infraestrutura e Indústrias de Base).