Uma cidade que oferece qualidade de vida não está aguardando por nós. Na qual, imunizados, voltaríamos a nos encontrar e conviver de modo rico e produtivo. Ela precisa ser projetada. Mas como se projeta algo que não pode ser projetado?
Com a vacinação, experimentamos novos hábitos de “presencialidade”: a vida social sem distanciamento. Mas, a presencialidade para a qual sonhamos voltar não existe. Pelo menos não do jeito que nós a imaginávamos durante a pandemia, nostalgicamente.
Na gradual retomada da presencialidade, me impressionou perceber em São Paulo, a cidade em que nasci, cresci e vivo até hoje, uma obsolescência que não via antes da pandemia: paisagens claustrofóbicas, espaços urbanos apertados, que pouco propiciam o encontro e o convívio, um ambiente construído desprovido de sentido. Como se o distanciamento social tivesse “limpado minha visão”, e eu pudesse ver, talvez pela primeira vez, quão ruim é o espaço urbano de SP. Creio que o mesmo está acontecendo na maior parte das cidades do mundo: estamos vendo com clareza que nossas cidades pouco eram “cidades de fato”, e sim um péssimo conjunto de infraestruturas.
Assim como as escolas são pouco mais que “depósitos de crianças” – perdão aos pais e mães hiper-atarefados na pandemia, mas só experimentaram o que os pais e mães de periferia já viviam –, a cidade como um todo é pouco mais que um “depósito de gente”.
A relação entre Espaço Urbano e Métodos Organizacionais
A rigor, cidades não são “projetáveis”, podemos apenas estimular seu crescimento orgânico e emergente com parâmetros cuidadosos, tangendo (como a um rebanho) o impulso por mais território e mais construções, ou a transformação do que já existe. É esse o papel de um Plano Diretor, por exemplo. Para ser legítimo, esse processo precisa ser colaborativo.
Uma cidade que oferece qualidade de vida não está aguardando por nós. Na qual, imunizados, voltaríamos a nos encontrar e conviver de modo rico e produtivo. Ela precisa ser projetada. Mas como se projeta algo que não pode ser projetado?
São as próprias situações presenciais que precisam ser reinventadas, e a partir delas propor as cidades do futuro. Trata-se de uma questão organizacional, que transforma o meio urbano.
O “trabalho distribuído”, baseado na translocalidade (o contexto urbano baseado em telecomunicação), vem crescendo lenta e gradualmente nos últimos 20 anos. A pandemia revelou uma infraestrutura que já estava desenvolvida, mas subutilizada: as teleconferências substituíram o trabalho de escritório, e as organizações que se agarraram ao trabalho presencial parecem ser aquelas que, como as cidades, estão obsoletas.
Mas, saberemos utilizar a telecomunicação com responsabilidade? Saberemos equilibrar a translocalidade e a presencialidade? Afinal, a cidade depende da presencialidade para oferecer o que tem de mais rico: o encontro.
Novas opções
Uma das tendências pandêmicas mais importantes, e ainda pouco conhecida, é a da educação fundamental por meio dos chamados “learning pods”: grupos organizados de pais apoiados por educadores credenciados conduzindo a educação de jovens e crianças em comunidades locais, dentro de um bairro ou comunidade afastada. Possivelmente, essa é a solução para um dilema já comum: como morar em um lugar com vida urbana saudável sem sacrificar a qualidade da educação de meus filhos?
Serão essas as “escolas distribuídas” do futuro? Uma organização que apoia comunidades de pais com infraestrutura organizacional – mão-de-obra capacitada, métodos e metodologia, credenciamento, avaliação e titulação, interfaces institucionais com órgãos públicos. Elas tornariam obsoleto o “local escola”? Hoje, a escola é um edifício que mais se parece com uma prisão, mas que poderia ser um conjunto de jardins, bibliotecas, laboratórios e auditórios, integrado em um ambiente de aprendizagem rica, divertida e eficiente (tudo o que a educação fundamental não é, hoje).
Novos paradigmas para a Cidade Distribuída
Com os “learning pods”, ou algo similar, sequer precisamos do “edifício escola”: a educação pode acontecer distribuída pela cidade, migrando entre edifícios e locais oportunos. O mesmo vale para o trabalho ou qualquer outra atividade presencial.
Será que perceber que as cidades que construímos ou herdamos estão obsoletas é só parte da constatação de que boa parte dos nossos métodos organizacionais (no trabalho, nas escolas, no planejamento urbano) já estavam obsoletos? Explorar essa “nova presencialidade” tem a ver com superar paradigmas urbanos obsoletos, e redescobrir a cidade como uma rede distribuída (desprovida de centro) cheia de encontros e oportunidades, composta por equipamentos e infraestrutura utilizados de modo oportuno.
A íntima e complexa relação entre espaço urbano e as práticas organizacionais é o que me fez desenvolver o Metadesign: um meio de se compreender que a organização da sociedade vem antes, é mais profunda e importante, e vai durar mais tempo do que o conjunto de construções, infraestrutura e edifícios que estamos habituados a chamar de “cidade”.
Acredito que desenhar colaborativamente e democraticamente esse espaço organizacional é o ato de Metadesign que permitirá que nossas cidades sejam novamente (ou talvez pela primeira vez?) espaços ricos para o encontro e a vida em sociedade.
As ideias e opiniões expressas no artigo são de exclusiva responsabilidade do autor, não refletindo, necessariamente, as opiniões do Connected Smart Cities
Head de inovação na Kyvo e fundador da Bootstrap. Arquiteto e urbanista, há mais de 25 anos pesquisa as complexas relações entre urbanidade, tecnologia, comunidades e inovação. Professor e pesquisador coordenador do grupo Cenários Urbanos Futuros (RITe-FAUUSP), além de consultor em projetos de inovação e transformação organizacional, com abordagem do Metadesign para processos de transformação cultural e urbana.