Cortada por canais, Afuá, na Ilha do Marajó, não permite carros e motos, e até os serviços essenciais são feitos sobre duas rodas
A Ilha do Marajó, classificada como a maior ilha fluviomarinha do mundo, guarda uma cidade que vive à frente de seu tempo. Afuá, município de quase 40 mil habitantes, fica a cerca de 90 km de Macapá (AP) e recebeu o apelido de Veneza Marajoara.
E não é para menos: a cidade é suspensa por palafitas e cortada por canais. Mas uma característica em especial chama a atenção de quem visita o local: o único meio de transporte usado – e autorizado – é a bicicleta. Para quem nasceu e viveu a vida inteira no local, o hábito saudável e sustentável faz parte da rotina, como conta a professora Maíra Yonara Silva de Moura, de 38 anos.
Por lá, aprender a pedalar é algo tão natural como aprender a andar. A afuaense, por exemplo, nem se recorda quando foram as suas primeiras pedaladas. “Me lembro que volta e meia chegava com algum hematoma de queda em casa”, conta ela, que guarda na memória com bastante carinho os detalhes de uma das suas primeiras bicicletas. Ela tinha cerca de 7 anos e pilotava uma BMX Rosa pelas estreitas ruas da cidade.
“Viver em uma cidade cujo único meio de locomoção é a bicicleta é maravilhoso. Além dos benefícios de saúde, é um momento de relaxamento, para observar paisagens e cumprimentar conhecidos”, diz Maíra ao Terra.
Segundo Maíra, não há engarrafamento nem acidentes graves. “Em menos de 10 minutos, estou no meu trabalho. Isso é qualidade de vida. Apesar de alguns bairros serem distantes para se ir pedalando, se você se organizar direitinho e sem pressa, você consegue chegar no horário”, relata.
Ao longo do ano, não é comum que as águas dos rios que banham Afuá invadam as ruas ou as casas, exceto nos meses de março e abril. Os rios, inclusive, são a principal via de entrada e saída da cidade.
“Tem um aeroporto de pequeno porte na cidade, mas o principal meio de saída é por navio ou lancha. A cidade mais próxima é Macapá, que leva cerca de duas horas de lancha para chegar. A maioria das pessoas quando quer se deslocar para, por exemplo, uma unidade de saúde mais equipada, prefere ir para Macapá, porque Belém fica mais longe. São cerca de dois ou três dias de viagem”, afirma.
Maíra tem um filho de 11 anos chamado Homero, que começou a pedalar aos 4 anos. Para ela, é um privilégio poder criar o menino em uma comunidade como a cidade das bicicletas. “Apesar das tecnologias e da internet, é muito comum vermos crianças brincando nas praças e nas ruas. Há uma liberdade bem confortável para elas. Ele vai e vem da escola sozinho de bike”, diz.
‘Bicilâncias’: bicicletas adaptadas no Afuá
A cidade nasceu a partir da doação de terras de uma antiga proprietária conhecida na região: Micaela Archanja Ferreira. Em 1890, o município foi emancipado e se desenvolveu sob as palafitas e com o transporte fluvial. Em 2002, o Afuá proibiu o uso de qualquer veículo motor, incluindo elétricos.
Por ser uma cidade sem carros, motos ou bicicletas elétricas, não existe sinalização de trânsito. Os moradores se organizam em ruas de mão dupla, por vezes estreitas. Ainda assim, engana-se quem pensa que o município não tenha ambulância, resgate, patrulhamento policial ou táxi. E não se trata de uma exceção para esses serviços essenciais.
Para a major Adriana Coutinho da Cunha, de 35 anos, realizar o policiamento no Afuá é uma experiência única. Ela é natural de Castanhal (PA), mas se mudou para a cidade das bicicletas em 2022 para trabalhar. “Por ser uma cidade sem ruas para veículos motorizados, utilizamos bicicletas e o patrulhamento a pé como principais meios de deslocamento durante o policiamento”, relata.
“O grande desafio é a agilidade no atendimento a ocorrências em pontos mais distantes, especialmente em situações emergenciais. Por outro lado, a dinâmica proporciona contato mais próximo com a comunidade”.
No caso de ocorrências em regiões ribeirinhas, em áreas mais remotas, a Polícia Militar do Afuá também utiliza embarcações para patrulhamento.
“As ocorrências mais comuns em Afuá estão relacionadas à perturbação do sossego, conflitos interpessoais, furtos e casos de violência doméstica, e na região ribeirinha, infelizmente, ainda há muitos casos de abuso e exploração sexual. Em períodos de maior fluxo de pessoas, como festividades e eventos, também intensificamos a prevenção contra crimes como furtos e tráfico de entorpecentes”, afirma.
As rondas policiais são feitas a pé e de bicicleta. “A relação da Polícia Militar com a comunidade de Afuá tem sido cada vez mais próxima. O policiamento comunitário é uma das nossas prioridades, pois acreditamos que a segurança pública se constrói com a participação ativa dos cidadãos”, conclui.
Já os profissionais que atuam na Brigada de Combate a Incêndio da Prefeitura Municipal de Afuá usam uma bicicleta adaptada com quatro rodas apelidada de “bicilância”. Leno Moraes, de 41 anos, conta que o modelo onde eles carregam as mangueiras é adaptado para a realidade da cidade.
“O preparo é igual ao de combater incêndios de cidade grande, o treinamento é o mesmo. A diferença é que precisamos conhecer bem a cidade. Os principais atendimentos são de combate a incêndio, mas a gente tem pouco registro. E sempre que aparece a gente consegue controlar a situação o mais rápido possível. Também atendemos quedas, fraturas, partos”, diz.
De acordo com o brigadista, para o exercício de sua profissão, é vantajoso ter uma cidade cercada de água. “Podemos usar um motor bomba, que colocamos no igarapé e depois começamos a combater o fogo. Você consegue esticar a mangueira do igarapé até uma casa pegando fogo”, exemplifica.
As equipes estão disponíveis 24 horas e estão aptas a atender todo tipo de ocorrência, inclusive com o uso de barco.
“A gente chega no local, coloca a vítima na prancha, se precisar faz os primeiros socorros. A gente toma todos os cuidados e desloca na nossa bicilância, adaptada para atender a ocorrência com os pacientes”, afirma.
‘Símbolo de sustentabilidade’, diz morador
Registros em imagens e vídeos de moradores do Afuá viralizaram nas redes sociais nos últimos meses. No vai e vem do dia a dia dos afuaenses, é comum ver um amontoado de bicicletas em frente às escolas do município ou na frente do hospital, por exemplo.
O fotógrafo Fabrício Guedes Dias, de 25 anos, acredita que os internautas ficam encantados com a vida “pacata” e “alegre” que a cidade oferece. Ele é “nascido e criado” no Afuá, como se diz no linguajar nortista.
“Afuá se tornou um símbolo de sustentabilidade. O relacionamento do afuaense com sua bike começa já bem cedo, com uma cadeirinha adaptada na bicicleta, é possível levar os bebês e crianças que ainda não tem coordenação motora para assumir o guidão para passear e usar como transporte. A paixão pela bicicleta é algo que fica pra sempre no coração do afuaense, pois é uma parte intrínseca de cada cidadão desta cidade, pois onde tem gente, tem bicicleta”, declara.
O fotógrafo conta que outro meio de transporte bastante usado por aqui é o “bicitáxi”, uma forma de triciclo adaptado. “Ele foi inventado por um morador de Afuá conhecido como Sarito Souza. Geralmente quem mais precisa de serviços de transporte em Afuá são os visitantes, levando em conta que o povo Afuaense já quase nasce montado na bicicleta”, brinca.
Para os turistas, existem opções de aluguel de bicicleta ou a locomoção pelos famosos bicitaxis. “Os passeios a pé pela cidade também são muito bem-vindos no início da manhã, quando os idosos estão exercitando a saúde ao ir caminhar na pista da cidade e ao comprar pão”, afirma.
Outro passeio garantido para quem deseja ver o melhor da Veneza Marajoara é pela orla da cidade. “No fim de tarde, o passeio a pé também pode ser maravilhoso, preferencialmente pelas orlas para que se aprecie um pôr do sol que não se encontra em qualquer lugar”, conclui o fotógrafo.
Fonte: Terra
