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Transporte Público: A Percepção de Qualidade é o Jogo Real, Não Apenas Frota Nova

Gustavo Balieiro
Gustavo Balieiro
Mestre em transportes pela UFMG, com mais de 15 anos na área tendo atuado em transportes em duas copas do mundo e duas olimpíadas, sendo as duas últimas posições em eventos como consultor do COI e CONMEBOL. Sócio de uma consultoria tradicional de transportes (PLANUM) e sócio de uma startup de inovação de mobilidade (Bus2). Atualmente trata mais de 1 bilhão de registros por mês entre dados de planejamento, AVL, SBE e outros, independente de formato e fornecedores.

Melhorar a experiência do usuário exige mais do que soluções óbvias, é necessário ter estratégia e foco nas demandas reais.

No incessante debate sobre a melhoria do transporte público nas cidades brasileiras, frequentemente nos deparamos com um apelo quase unânime por soluções que, embora pareçam óbvias, nem sempre atacam a raiz do problema ou, mais crucialmente, alteram a percepção de qualidade do serviço pelo usuário. Assim como discuti em “Tarifa Zero não é Solução de Transporte para o Brasil”, onde argumento que a gratuidade universal sem planejamento adequado pode mascarar ineficiências e prejudicar a avaliação do transporte, é preciso aprofundar o olhar sobre o que realmente fideliza e atrai passageiros.

A verdade inconveniente é que medidas como a simples renovação de frota, embora bem-intencionadas e visualmente impactantes, são frequentemente superestimadas em seu efeito na satisfação do usuário. O que o passageiro valoriza, no frigir dos ovos, é um veículo confiável, que não o deixe na mão, e que ofereça um padrão de qualidade consistente – seja ele novo ou não. Limpeza, manutenção em dia e ausência de falhas mecânicas falam mais alto do que o ano de fabricação.

Ademais, é preciso reconhecer que, em muitos sistemas, o maior incentivo para a renovação da frota não reside primordialmente na melhoria da qualidade percebida pelo passageiro, mas sim no impacto que tal renovação acarreta nos custos do sistema – e, por conseguinte, na remuneração dos operadores. Como detalhado no artigo “Transporte: o que muda? Atacar o modelo de remuneração do transporte público!“, a revisão do modelo de remuneração é crucial. Através dela, é possível alinhar os incentivos para que a busca por eficiência e qualidade real, aquela que o usuário valoriza, também possa contribuir para um valor da tarifa mais atrativo. Encontrar esse equilíbrio entre um preço acessível, atributos de qualidade tangíveis, e a sustentabilidade econômico-financeira dos contratos – sem exercer pressão indevida sobre o orçamento público, linha de raciocínio similar à discussão sobre a tarifa zero – é o desafio central para um transporte público.

É evidente que ofertar alta frequência beneficia o passageiro e minimiza os elementos de “previsibilidade”. Contudo, injetar mais veículos em uma linha sem um entendimento profundo da demanda real tem um limite claro de aderência. Pode-se reduzir o tempo de espera, mas se os horários não forem previsíveis, o custo operacional elevado muitas vezes não vai compensar o ganho marginal de novos usuários, por outro lado a regularidade e previsibilidade faz com que mesmo em linhas com baixa frequência o usuário se programe e confie no sistema.

Neste quesito, o mercado global já estabeleceu referências claras. Um benchmark interessante sobre a precisão de informações de Tempo Estimado de Chegada (ETA) é apresentado pela GoSwiftly, em seu artigo “How On-Target Is That ETA, Really? Now There’s a Way to Know“. Ele evidencia a importância de medir e comunicar a acurácia dessas estimativas. No Brasil, já dispomos de ferramentas que permitem essa aferição, como a plataforma da Bus2, que oferece uma análise detalhada da precisão do ETA para sistemas de transporte, demonstrando que a tecnologia para qualificar essa informação já está ao nosso alcance.

Mas a previsibilidade é apenas uma faceta. Garantia de adequados índices de ocupação, informações sobre a lotação do veículo, a garantia de um ambiente interno limpo e seguro, a suavidade da viagem (sem solavancos excessivos ou freadas bruscas), a comodidade a bordo, e até mesmo a cordialidade dos operadores, tudo isso compõe um mosaico que define a percepção de valor do serviço.

Como já abordei em outras ocasiões, a chave para essa transformação reside na utilização inteligente de dados. São eles que permitem entender os fluxos de passageiros, identificar gargalos operacionais, otimizar rotas e horários de forma dinâmica e, crucialmente, embasar a reespecificação de todo o sistema de transporte. Um sistema reespecificado com base em evidências pode, por exemplo, garantir a boa alocação da frota para uma confiabilidade dos veículos existentes, ajustar a oferta à demanda real para evitar tanto a superlotação crônica quanto a ociosidade custosa, e implementar tecnologias que forneçam informações precisas e úteis ao passageiro.

Em suma, enquanto soluções fáceis e midiáticas podem gerar um impacto inicial, elas raramente sustentam uma mudança real na percepção do usuário a longo prazo. É imperativo que gestores públicos e operadores concentrem seus esforços e investimentos em melhorar os atributos que verdadeiramente importam para quem utiliza o transporte coletivo diariamente: confiabilidade, previsibilidade, conforto, informação e preço. Somente assim conseguiremos não apenas reter os atuais passageiros, mas também atrair aqueles que hoje optam por outros modais, construindo um sistema de mobilidade urbana verdadeiramente eficiente e valorizado pela população.

As ideias e opiniões expressas no artigo são de exclusiva responsabilidade do autor, não refletindo, necessariamente, as opiniões do Connected Smart Cities

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Gustavo Balieiro
Gustavo Balieiro
Mestre em transportes pela UFMG, com mais de 15 anos na área tendo atuado em transportes em duas copas do mundo e duas olimpíadas, sendo as duas últimas posições em eventos como consultor do COI e CONMEBOL. Sócio de uma consultoria tradicional de transportes (PLANUM) e sócio de uma startup de inovação de mobilidade (Bus2). Atualmente trata mais de 1 bilhão de registros por mês entre dados de planejamento, AVL, SBE e outros, independente de formato e fornecedores.

Melhorar a experiência do usuário exige mais do que soluções óbvias, é necessário ter estratégia e foco nas demandas reais.

No incessante debate sobre a melhoria do transporte público nas cidades brasileiras, frequentemente nos deparamos com um apelo quase unânime por soluções que, embora pareçam óbvias, nem sempre atacam a raiz do problema ou, mais crucialmente, alteram a percepção de qualidade do serviço pelo usuário. Assim como discuti em “Tarifa Zero não é Solução de Transporte para o Brasil”, onde argumento que a gratuidade universal sem planejamento adequado pode mascarar ineficiências e prejudicar a avaliação do transporte, é preciso aprofundar o olhar sobre o que realmente fideliza e atrai passageiros.

A verdade inconveniente é que medidas como a simples renovação de frota, embora bem-intencionadas e visualmente impactantes, são frequentemente superestimadas em seu efeito na satisfação do usuário. O que o passageiro valoriza, no frigir dos ovos, é um veículo confiável, que não o deixe na mão, e que ofereça um padrão de qualidade consistente – seja ele novo ou não. Limpeza, manutenção em dia e ausência de falhas mecânicas falam mais alto do que o ano de fabricação.

Ademais, é preciso reconhecer que, em muitos sistemas, o maior incentivo para a renovação da frota não reside primordialmente na melhoria da qualidade percebida pelo passageiro, mas sim no impacto que tal renovação acarreta nos custos do sistema – e, por conseguinte, na remuneração dos operadores. Como detalhado no artigo “Transporte: o que muda? Atacar o modelo de remuneração do transporte público!“, a revisão do modelo de remuneração é crucial. Através dela, é possível alinhar os incentivos para que a busca por eficiência e qualidade real, aquela que o usuário valoriza, também possa contribuir para um valor da tarifa mais atrativo. Encontrar esse equilíbrio entre um preço acessível, atributos de qualidade tangíveis, e a sustentabilidade econômico-financeira dos contratos – sem exercer pressão indevida sobre o orçamento público, linha de raciocínio similar à discussão sobre a tarifa zero – é o desafio central para um transporte público.

É evidente que ofertar alta frequência beneficia o passageiro e minimiza os elementos de “previsibilidade”. Contudo, injetar mais veículos em uma linha sem um entendimento profundo da demanda real tem um limite claro de aderência. Pode-se reduzir o tempo de espera, mas se os horários não forem previsíveis, o custo operacional elevado muitas vezes não vai compensar o ganho marginal de novos usuários, por outro lado a regularidade e previsibilidade faz com que mesmo em linhas com baixa frequência o usuário se programe e confie no sistema.

Neste quesito, o mercado global já estabeleceu referências claras. Um benchmark interessante sobre a precisão de informações de Tempo Estimado de Chegada (ETA) é apresentado pela GoSwiftly, em seu artigo “How On-Target Is That ETA, Really? Now There’s a Way to Know“. Ele evidencia a importância de medir e comunicar a acurácia dessas estimativas. No Brasil, já dispomos de ferramentas que permitem essa aferição, como a plataforma da Bus2, que oferece uma análise detalhada da precisão do ETA para sistemas de transporte, demonstrando que a tecnologia para qualificar essa informação já está ao nosso alcance.

Mas a previsibilidade é apenas uma faceta. Garantia de adequados índices de ocupação, informações sobre a lotação do veículo, a garantia de um ambiente interno limpo e seguro, a suavidade da viagem (sem solavancos excessivos ou freadas bruscas), a comodidade a bordo, e até mesmo a cordialidade dos operadores, tudo isso compõe um mosaico que define a percepção de valor do serviço.

Como já abordei em outras ocasiões, a chave para essa transformação reside na utilização inteligente de dados. São eles que permitem entender os fluxos de passageiros, identificar gargalos operacionais, otimizar rotas e horários de forma dinâmica e, crucialmente, embasar a reespecificação de todo o sistema de transporte. Um sistema reespecificado com base em evidências pode, por exemplo, garantir a boa alocação da frota para uma confiabilidade dos veículos existentes, ajustar a oferta à demanda real para evitar tanto a superlotação crônica quanto a ociosidade custosa, e implementar tecnologias que forneçam informações precisas e úteis ao passageiro.

Em suma, enquanto soluções fáceis e midiáticas podem gerar um impacto inicial, elas raramente sustentam uma mudança real na percepção do usuário a longo prazo. É imperativo que gestores públicos e operadores concentrem seus esforços e investimentos em melhorar os atributos que verdadeiramente importam para quem utiliza o transporte coletivo diariamente: confiabilidade, previsibilidade, conforto, informação e preço. Somente assim conseguiremos não apenas reter os atuais passageiros, mas também atrair aqueles que hoje optam por outros modais, construindo um sistema de mobilidade urbana verdadeiramente eficiente e valorizado pela população.

As ideias e opiniões expressas no artigo são de exclusiva responsabilidade do autor, não refletindo, necessariamente, as opiniões do Connected Smart Cities

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