Brasileiros relataram para o Terra como é seu cotidiano usando a bicicleta como principal meio de transporte na capital da Holanda.
O ritmo de vida nas grandes cidades pode ser frenético. Um constante ir e vir, em que o tempo parece escasso. Tudo atrapalha. Grandes quantidades de carro, engarrafamentos, acidentes e poluição. Foi esse o cenário que o publicitário brasileiro, Thalles Reis Sarandy, de 36 anos, deixou para trás ao se mudar para Amsterdã, na Holanda. Se em São Paulo os desafios de trânsito, horários apertados e a busca incessante por produtividade pareciam dominar o cotidiano, na capital holandesa, ele encontrou um lugar que se movia em outro compasso.
Ele está há dois anos na cidade, desde que recebeu uma proposta da empresa em que já trabalhava no Brasil. Ele veio para um projeto que duraria um ano, mas, quando acabou, recebeu a proposta de ficar permanentemente. A adaptação de Thalles foi bem rápida, tanto em relação ao clima — a cidade é bem chuvosa, faz pouco sol e é fria — como em relação ao idioma e à cultura. Mas o fator determinante para a troca foi a mobilidade.
“Uma questão que fez muito eu querer ficar é a mobilidade dentro da cidade de bicicleta. Para ser bem sincero, moro aqui há dois anos e nem sei usar o transporte público direito, porque eu faço tudo de bicicleta”, explica.
Thalles levava 45 minutos de carro (e com sorte) no trajeto entre sua casa, na Consolação, e o lugar onde trabalhava, na Vila Olímpia. Um percurso de apenas 4,5 quilômetros na capital paulista. Cansado do estresse que o trânsito provocava, ele ficou um ano indo e voltando a pé, o que lhe tomava 10 minutos a mais do tempo habitual. Já na cidade conhecida por seus museus, canais, os coffeeshop e bicicletas, ele demora 12 minutos contadinhos no relógio pedalando.
Segundo ele, faz muita diferença na qualidade de vida estar a vinte minutos de qualquer lugar, na capital de um país, onde há muita coisa para se fazer, além de trabalhar. Em Amsterdã, talvez até em vários outros lugares da Europa, tudo é feito com calma. Ninguém parece estar correndo, a não ser os turistas, mas todo mundo aparenta estar no tempo certo.
E não é preciso nem ser morador para perceber essa calmaria. Em dois dias de viagem pela capital holandesa, esse foi o clima –algo até estranho para quem vive em São Paulo, a cidade que nunca para e nunca dorme, em que é comum ver as pessoas correndo pelas ruas. “Come com calma. Aqui é Europa, tem que comer com calma”, disse Thales, após informá-lo que atrasaria um pouco para a nossa entrevista por que estava almoçando.
A cidade é mais fácil em cima da bicicleta
O brasileiro descreve Amsterdã como simples e muito tranquila, como se fosse a vida do interior das terras tupiniquins. “Isso foi um atrativo muito grande”, reforça. O brasileiro garante que ali é fácil chegar a qualquer lugar de magrela, pois a cidade é plana, o que impacta no tempo também.
Sem contar que a cidade é toda preparada para isso: são mais de 500 quilômetros de ciclovia espalhados por 218 km² de espaço urbano. As bikes são prioridade no trânsito, têm semáforos e leis próprias para os ciclistas e muitos estacionamentos espalhados.
Ao todo, 32% do tráfego de Amsterdã é feito de bicicleta, enquanto 22% das viagens são realizadas de carro, segundo dados de 2021. A pesquisa aponta ainda que ao menos 63% dos cidadãos usam diariamente o meio de transporte.
Esse exemplo poderia ser significativo para o mundo. Conforme um estudo da Universidade do Sul da Dinamarca, publicado pelo periódico Communications Earth and Environment em 2022, se todo o mundo pedalasse 2,6 quilômetros todos os dias, as emissões globais de carbono cairiam aproximadamente em 686 milhões de toneladas. Essa economia representa aproximadamente 86% das emissões de carbono da Alemanha em 2015, ou cerca de 20% das emissões de carbono da frota global de automóveis de passageiros nesse mesmo ano.
Mas o transporte não se tornou referência e o preferido na capital holandesa à toa. De acordo com o Mobilidade Estadão, quando os carros passaram a ser o principal meio de transporte na Europa, na década de 70, o movimento nas ruas aumentou, havia mais trânsito, congestionamento, poluição e, claro, acidentes. Foi então que, em 1971, a campanha “Pare de Assassinar Crianças” surgiu em meio a protestos populares. Com isso, novos meios de transitar pela cidade foram buscados pelo governo para evitar fatalidades.
Enquanto se caminha pelas ruas estreitas de Amsterdã, em meio aos prédios históricos e casas de tijolinhos e telhados pontudinhos, quase não se ouve buzinas de carro. Já as sinetas de bicicletas são usadas a todo momento. É preciso estar atento para não ser atropelado pelos ciclistas que passam voando. Ao perceber o movimento, até dá um medinho de pegar uma bike e sair por aí, porque todo mundo parece muito decidido para onde vai.
Inclusive, o publicitário diz que não se sentiu à vontade para pedalar logo que chegou. Para quem olha de fora, o ambiente parece “meio agressivo” e “caótico”, como descreve. No entanto, descobriu que a cidade é muito mais fácil quando você está em cima de uma bicicleta. “A partir desse momento que você pegou a bike, a cidade se transforma”, pontua.
Estilo de vida é mais sustentável e de qualidade
Enquanto em São Paulo se é engolido pelo trânsito, movimento e poluição, Amsterdã se mostra o oposto disso. É comum ver pessoas pedalando pelas ruas embaixo de sol e até mesmo chuva, cada um com a sua capa – guarda-chuvas não são tão comuns quanto o meio de transporte mais popular, por exemplo, por causa do vento.
“Ela [a bicicleta] traz esse desafio de você controlar o tempo praticamente minuto a minuto. Tem aplicativo para você descobrir se você sai da sua casa agora, daqui a 10 minutos, ou se você aceita que vai chegar molhado. E isso faz parte. A cultura é que como todo mundo vai de bicicleta. Em dias de chuva, você vê todo mundo chegando ao trabalho com a canela molhada, porque o sobretudo só vai até a coxa. E é aceitável. Todo mundo vai estar nessa mesma situação”, afirma Thalles.
A brasileira Luíza de Pádua Marques Victor, de 25, concorda com o publicitário. A business developer mora na capital da Holanda há três anos e relata que faz tudo de bicicleta “faça chuva, sol ou neve”. Por ser bem comum, eles usam o meio de transporte para ir em bar, em festas e até para fazer mudança, segundo ela. “Tem gente que anda de bicicleta com móvel da casa”, ri enquanto descreve.
Como as festas vão até de madrugada, é mais fácil usar a magrela para se locomover, pois o transporte público fecha cedo, além de ter um custo um tanto salgado. A passagem de metrô simples, só de ida, custa € 3,20 (cerca de R$ 20,15, na cotação atual). O transporte por aplicativo, então, nem se fala.
“Acho que eles fazem isso justamente para incentivar o uso da bicicleta e menos uso de transporte público no geral, assim, carro e transporte”, diz.
Não há comparação
Embora estejamos fazendo vários comparativos com São Paulo, Thalles diz que uma cidade não tem nada a ver com a outra. O ritmo de vida é diferente, a geografia da cidade também, a relação com o trabalho também. “Isso não tem a grande importância que a gente dá lá, é muito menos agitado. A velocidade de trabalho é mais lenta, você sai do trabalho às 17h e ainda dá tempo de ir para um parque, curtir o momento”, esclarece.
O estilo de vida mais sustentável física e psicologicamente acompanha o meio ambiente, inclusive. Há políticas públicas e privadas para que todo esse rolê funcione. Há empresas que dão um incentivo aos funcionários que usam o veículo de duas rodas para ir até o trabalho, dando-lhes uma quantia em dinheiro. Afinal, em todo lugar é possível encontrar estacionamentos para as bikes, até subterrâneo. É possível também alugar uma delas para sair por aí. Os custos são de cerca de €12,99 (cerca de R$ 82,06).
Além disso, no Centro da cidade só é permitido o uso de carros em modelos híbridos ou elétricos, o que ajuda a ter menos emissão de poluentes. “Então, você não sente aquela fumaça”, relata.
De acordo com o Instituto Cidades Sustentáveis, o município tem o planejamento para que os estacionamentos para carros praticamente deixem de existir na região central e se concentrem em zonas periféricas, para criar um ambiente livre de congestionamentos. Já nas áreas periféricas, o objetivo é trazer o conforto da zona urbana, com a criação de escolas, centros comerciais e serviços.
Muitos dos moradores sequer veem necessidade de tirar licença para dirigir um carro. É o caso de Luíza. Ela se mudou muito nova para a Europa, quando ainda era adolescente e, por isso, nunca tirou a permissão para dirigir. “Não é uma necessidade que eu sinto na minha vida. Ainda quero fazer para viajar, mas o meu dia-a-dia é de bicicleta”, explica. Inclusive, na semana anterior à entrevista, ela tinha viajado para fora da Holanda, e levou sua companheira.
“Fiquei muito orgulhosa. Fui pela primeira vez com a minha bicicleta, com uma malinha de mão, arrastando as mochilas e a bike”, descreve.
Desafios diferentes entre as cidades
Embora o transporte seja muito difundido, há outros desafios acerca da bicicleta, como o abandono delas, as quedas nos canais e os furtos. Thalles menciona que é seguro deixar qualquer coisa para trás, como o celular, mas não a bicicleta. Outro dia, ele até deixou o aparelho por três horas no suporte da magrela estacionada na frente do trabalho, e nada aconteceu.
“Ele ficou por lá esse tempo todo, até eu me tocar que eu tava sem ele, desci e peguei, nada aconteceu. E no mesmo lugar eu já deixei minha bicicleta uma vez não trancada, e ela sumiu em menos de duas horas, quando eu voltei já não tinha mais bicicleta”, relembra.
Questionado sobre o que ele acha que SP tem para aprender com Amsterdã sobre mobilidade, o publicitário afirma que são muitos desafios, como as ladeiras. “O que você vai fazer para chegar na Paulista de bicicleta, na rampa da Consolação ou da Brigadeiro?”, ele devolve o questionamento, e, em seguida, diz que uma possível solução para isso seria a bicicleta elétrica, que é um problema na cidade holandesa, pois causa vários acidentes.
“Talvez se consiga acelerar mais a realidade, embora o custo ainda seja bem alto, numa realidade, mesmo brasileira, acho que de qualquer lugar, mesmo aqui as bikes elétricas, elas são caras. Então, acho que dá para aprender com a questão de ser uma cidade-parque. Eu gosto muito desse conceito. As pessoas se respeitam mais aqui fora. Você ter uma árvore em qualquer canto, você ter um ambiente mais amigável para transitar, ajuda bastante”, finaliza.
Fonte: Redação Terra
