Os eventos meteorológicos extremos que assolam o Rio Grande do Sul desde o segundo semestre de 2023 são sem dúvidas os mais significativos na história moderna brasileira.
O cenário Brasileiro de desastres muda quando grandes tragédias ocorridas na região Sudeste entre 2008 e 2011, tendo como as mais notáveis o desastre do Morro do Mumba em Niterói, e os deslisamentos de terra em Petrópolis na região Serrana do Rio de Janeiro, expuseram o a falta de preparo do Estado Brasileiro para o enfrentamento de catástrofes naturais. A partir disso, houve restruturação de políticas públicas que culminaram na lei que Instituiu a Política Nacional de Proteção e Defesa Civil (lei 12.608 de 10 de abril de 2012), a criação do CEMADEN – Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais, ligado ao Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações e a reformulação do CENAD – Centro Nacional de Gerenciamento de Riscos e Desastres, órgão da Secretaria Nacional de Proteção e Defesa Civil subordinado ao Ministério do Desenvolvimento Regional. Até então, reportavam-se desastres pontuais, tempestades severas em pequenas cidades do interior, as quais ganhavam luz sob a mídia e desapareciam com a mesma velocidade. Seguíamos assim, todos os brasileiros, abençoados por deus em um país livre de desastres.
A legislação foi criada, as instituições federais como o CEMADEM também, sistemas que funcionam dentro das melhores práticas exercidas nos centros internacionais. Mas com parte da tarefa ficou sob a responsabilidade dos estados, nem todos cumpriram satisfatoriamente o seu dever de casa, os fatos falam por si, não é necessário explicar o que aconteceu no estado do Rio Grande do Sul.
Também alheia aos regramentos Legais, a natureza seguiu seu ciclo.
Normalmente o Rio Grande do Sul tem seu regime de chuva controlado por dois fenômenos típicos: ciclones extratropicais que promovem a passagem de frentes frias, no período final de outono e inverno e grandes sistemas convectivos de mesoescala que provocam chuvas no período de primavera-verão. Estes sistemas são responsáveis pela maior parte da chuva na região Sul do Brasil.
A região de latitudes médias no globo é marcada por um forte contraste térmico, característica presente no Sul da América do Sul. O fenômeno que fornece energia termodinâmica para o desenvolvimento dos ciclones e grandes tempestades. Para que essa energia seja liberada, necessitamos outro ingrediente em níveis superiores, região que fica aproximadamente a 5km da superfície, é necessário que passem trens de ondas atmosféricas sobre a região, hora estabilizando , hora instabilizam a atmosfera, criando condições para a liberação da energia termodinâmica na forma de tempestades que produzem chuvas. Neste processo o ar quente e úmido condensa, forma nuvens e volta para sua fase líquida liberando o calor acumulado em níveis superiores. Neste perpétuo ciclo, o sistema atmosférico terrestre luta indefinidamente tentando homogenizar as temperaturas, destruindo os gradientes térmicos entre a região equatorial e polar do planeta.
Neste final de fenômeno El Niño, dentro de um claro contexto de mudanças climáticas, no final de abril, um padrão de escoamento atípico formou-se no oceano Pacífico. Em 2024, as chuvas do Feriado do Trabalhador, fenômeno atípico conhecido como padrão de bloqueio, passou a atuar no oceano Pacífico, desviando os trens de onda atmosférica em níveis superiores para Sul da Argentina. Sem estas ondas passando sobre a região Sul do Brasil houve a intensificar o gradiente térmico. A formação de uma bolha quente no Brasil Central que contrastava com as temperaturas da região Polar, formando uma Frente Estacionária, cuja principal característica é garantir a persistência das condições de tempo sobre uma região por vários dias. Estabeleceu-se então uma condição para a formação de chuvas contínuas, uma região onde as tempestades se regeneravam continuamente na região central do rio grande do Sul. As chuvas que ocorreram entre os dias 29 de abril e 05 de maio de 2024 na Região Centro, bacia hidrográfica do Rio Jacuí no Rio Grande do Sul totalizaram 465mm. Com a evolução do sistema Meteorológico também começou a chover na Serra Gaúcha, na bacia hidrográfica Taquarí-Antas, com a mesma intensidade, as tempestades produziram os volumes acumulados de até 600mm. Pouco tempo após a chuva, toda essa água foi drenada para a região metropolitana de Porto Alegre, ponto de convergência destes rios. Rapidamente as águas do Lago Guaíba subiram atingindo a cota de inundação de 3m, na sequência atingiram a marca de 5,5m em um sistema de diques, bombas e contenções projetadas para suportar até 6m. A falta de manutenção e o descaso ao longo de governos criou o cenário perfeito para a catástrofe humanitária que estamos vivendo. Os números da meteorologia e hidrologia impressionam, mas impressionam mais as 2.12 milhões de pessoas afetadas, 500mil desalojados , aproximadamente 100mil pessoas vivendo em abrigos e um total de mortos de 150 pessoas, mas o número duro e frio só será conhecido quando as águas baixarem. Também foram afetados rebanhos, lavouras, animais domésticos. Entre os dias 10 e 12 de maio a Frente Estacionária voltou, produzindo chuvas que ficaram entre 150 e 400mm no estado, mantendo os níveis da cheia na Grande Porto Alegre.
De maneira irônica, o Rio Grande do Sul é o único estado Brasileiro que possui duas Universidades Federais com cursos de graduação e pós-graduação em meteorologia, estes profissionais se encontram trabalhando em todo o país e no exterior, trabalham em sistemas estaduais de meteorologia em da Amazônia, Ceará, São Paulo, Santa Catarina e Paraná. Nestes dois últimos, são quase 40 profissionais da área atuando. Optando por um modelo não estatal, o Rio Grande do Sul conta com apenas 3-4 profissionais e cumpre a risca um ditado tipicamente gaúcho: “Na casa do Ferreiro o espeto é feito de pau”.
Programa de Pós-Graduação em Meteorologia da Universidade Federal de Santa Maria