A descentralização possibilita o desenvolvimento de iniciativas públicas que não são oportunizadas para os estados e a União.
Em anos eleitorais, nos meses que antecedem as eleições até a sua realização, é vedada a divulgação de qualquer informação que possa ser interpretada como publicidade institucional. Então, não é permitido mencionar nomes ou expressões, por exemplo, que possam identificar autoridades, governos ou administrações cujos cargos estejam em disputa, ou seja, praticamente todos. Além disso, é necessário adotar medidas para ajustar o conteúdo de sites, canais e outros meios de comunicação que possam ser considerados como publicidade institucional, abrangendo, assim, a maioria dos dados sociais.
Antes que esse período se inicie e, seja por exigência legal ou por conveniência, alguns assuntos não recebam a atenção devida ou surjam de forma atenuada, é crucial provocar um diálogo franco sobre as políticas municipais.
Nos Estados Unidos e na Inglaterra, a responsabilidade da autoridade local por políticas públicas é comum, onde a maioria dessas políticas é municipal ou intramunicipal. O interesse dos países latino-americanos no desempenho dos diversos níveis do poder político não é apenas resultado da observação das experiências estadunidenses e inglesas, mas também do processo de descentralização das práticas governamentais em países europeus.
A descentralização possibilita o desenvolvimento de iniciativas públicas que não são oportunizadas para os estados e a União. Isso ocorre principalmente devido à presença de serviços específicos nas cidades e bairros, além da proximidade com as comunidades e associações locais. Essa proximidade facilita a elaboração de planos adaptados à realidade do lugar, sensíveis às expectativas da população, e promove o estabelecimento de parcerias entre agências governamentais e organizações da sociedade civil. Com frequência, políticas municipais incorporam recursos de governos estaduais e federais, ou representam o implemento, no âmbito municipal, das políticas desses governos.
No Brasil, cada cidade enfrenta um conjunto de desafios específicos. No entanto, os governos locais também compartilham desafios semelhantes, incluindo a ineficácia na adaptação de estratégias de gestão, a escassez de recursos e a tendência de priorizar interesses político-partidários em detrimento das necessidades da população, especialmente dos grupos com menor capital social. Assim sendo, constatamos que pelo menos dois prefeitos eleitos em 2020 têm perdido seus mandatos, mensalmente, devido a razões como improbidade administrativa ou abuso do poder econômico e político.
Diante desse contexto, há um amplo debate em torno das vantagens e desvantagens das estratégias de gestão focalizadas. Os opositores dessas estratégias destacam que elas têm um alcance limitado e frequentemente, devido à ineficácia da gestão, resultam na migração dos problemas sociais para outras áreas geográficas, no deslocamento para outros grupos sociais ou na mudança da natureza desses problemas. Já os defensores da focalização argumentam que, diante da insuficiência de recursos, concentrar-se em áreas ou grupos específicos é a melhor opção, com maiores chances de alcançar os resultados pretendidos.
De fato, as políticas municipais justas podem promover a qualidade de vida dos cidadãos em locais específicos, podendo direcionar-se a grupos sociais em áreas que não têm acesso a serviços essenciais. Focar em problemas tem a vantagem de facilitar a identificação e a integração de agentes estratégicos, bem como a resolução dos conflitos. Entretanto, uma cidade inteligente não deve seguir um modelo único, e a escolha da melhor estratégia depende de um diagnóstico.
O diagnóstico é um processo que compreende a identificação de um problema ou conjunto de desafios prioritários. Ele envolve a identificação das áreas afetadas, suas características físicas, econômicas, sociais, culturais e político-administrativas, bem como a análise da dinâmica espaço-temporal das manifestações sociais, como ações coletivas e violências, e dos fatores de risco e de proteção que influenciam no aumento ou diminuição da gravidade das crises municipais. Mais ainda, requer a avaliação das consequências decorrentes das intervenções públicas já realizadas. Porém, o diagnóstico é apenas o ponto de partida, conduzindo às etapas de formulação e implementação, cada uma delas incluindo uma série de passos.
A formulação das políticas municipais parte de um processo de negociações e pactuações. Durante a formulação, é indispensável a formação de consensos mínimos. Estes consensos não são estáticos, podendo aumentar ou diminuir a qualquer momento. Além disso, a formulação depende de demandas qualificadas. Demandas pouco claras e precisas, assim como demandas conflitantes ou contraditórias, precisam ser qualificadas durante a definição de princípios e diretrizes e antes da implementação das estratégias.
A implementação é conduzida pelos gestores públicos e profissionais do setor público. Embora a liderança do gabinete do prefeito seja imprescindível, a prática é influenciada pelas posturas de lideranças comunitárias, grupos e movimentos sociais. Essas lideranças têm o poder de mobilizar. A mobilização é prioritária, pois pode guiar a atuação de agentes públicos e viabilizar a continuidade dos programas e ações durante processos de mudança de governo. Por fim, a eficácia da implementação requer a capacitação adequada de todos os envolvidos, alinhada com os resultados do diagnóstico e objetivos das políticas.
Além das etapas mencionadas, o monitoramento e a avaliação são vitais para o êxito das políticas municipais. Destacam-se o uso de métodos e técnicas para coleta e análise de dados e a criação de indicadores para acompanhamento, controle e apoio à tomada de decisão. Aqui, a tecnologia e a inovação, que desempenham papéis cruciais em cada etapa, assumem uma função crítica, fornecendo às autoridades governamentais e aos cidadãos as ferramentas essenciais para fundamentar escolhas e promover o desenvolvimento sustentável das cidades.
É essencial destacar que o êxito de uma cidade inteligente reside na não instrumentalização dessas escolhas para objetivos político-partidários, mas sim na resolução dos problemas identificados nos diagnósticos. Conselhos, fóruns, conferências e audiências públicas, tanto presenciais quanto digitais, são meios de desmistificar tais problemas e de motivar e organizar a participação popular.
Mais do que a participação popular, a participação cidadã desempenha um papel fundamental na orientação das políticas municipais, ressaltando o valor da transparência, do respeito às leis e aos direitos humanos, e da consideração pelas expectativas da sociedade. Em linhas gerais, essa abordagem também se reflete na mobilização de recursos e na aplicação de mecanismos concretos para a responsabilização legal e ética das atividades governamentais.
Neste momento, temos uma nova oportunidade de fortalecer nossa cidadania. Devemos ficar atentos ao sentido dos argumentos, pois é decisivo que o discurso eleitoral não retrate um cenário irreal ou utópico. Pelo contrário, deve demonstrar entendimento dos desafios enfrentados, das etapas e engajamento necessários, e propor abordagens práticas e viáveis para as estratégias de gestão que buscam assegurar um acesso equitativo aos serviços públicos. No entanto, em muitas cidades brasileiras, esse não tem sido o tom predominante nos discursos que foram e serão proferidos.
Este texto foi inspirado no trabalho do estimado colega e mentor, o professor Dr. Paulo de Mesquita Neto (in memoriam).
As ideias e opiniões expressas no artigo são de exclusiva responsabilidade do autor, não refletindo, necessariamente, as opiniões do Connected Smart Cities.
Profissional com mais de 15 anos de experiência em coordenação de projetos, análises quali-quantitativas, desenvolvimento de pesquisas e disseminação de conhecimentos. Sociólogo (USP) e Tecnólogo (INPE). Coordenador de Transferência de Tecnologia e “Head” do Centro Colaborador da PAHO/OMS (BRA-61) no Núcleo de Estudos da Violência (NEV) da USP – CEPID-FAPESP. Pesquisador no Programa de Fellowship da ABES, atuando no Think Tank “Centro de Inteligência, Políticas Públicas e Inovação” em parceria com o Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP.