Dez anos depois das manifestações de 2013, que se espalharam pelo país a partir dos protestos contra o aumento da passagem de ônibus em São Paulo, a situação da mobilidade urbana no Brasil piorou. Em uma década, o investimento público no setor caiu a menos da metade, de acordo com estudo do economista Claudio Frischtak, da Inter.B Consultoria.
Se, em 2013, os R$ 8,6 bilhões em recursos estatais aplicados em transporte público já não eram considerados suficientes, o montante de R$ 4,1 bilhões no ano passado aponta uma tendência preocupante.
Enquanto isso, subsídios para automóveis e combustíveis só aumentam. Ainda no ano passado, antes do programa de incentivos fiscais para baratear carros lançado pelo governo federal na semana passada, o setor automotivo já tinha sido beneficiado com isenções tributárias da ordem de R$ 8,8 bilhões, mais que o dobro do investido pelo setor público em mobilidade nas cidades.
Só a desoneração dos impostos sobre combustíveis no último ano do governo de Jair Bolsonaro (mantida parcialmente neste primeiro do de Lula) representou R$ 29,8 bilhões a menos nos cofres públicos.
Os números divulgados na semana passada pelo Ministério do Planejamento indicam, portanto, que, só em 2022, o país investiu em transporte coletivo e de massa cerca de 10% do que concedeu de subsídios tributários para o uso do carro.
Via-crúcis de 3 horas
Esse contraste ajuda a explicar a via-crúcis de quem faz o percurso casa-trabalho-casa todos os dias como passageiro de modais de transportes nas cidades brasileiras, cujas vias têm cada vez mais engarrafamentos, mesmo em cidades do interior.
Para chegar ao trabalho por volta das 9h30, no Flamengo, na Zona Sul do Rio, a empregada doméstica Rosalva Lourenço da Silva, de 60 anos, precisa acordar às 6h, em Bangu, na Zona Oeste do Rio, para atravessar a cidade.
A missão de chegar ao trabalho não é simples. Ela alterna entre ônibus, trem e metrô cheios. E faz tudo de novo na volta: três horas em pé nos três modais, ao custo de R$ 26 por dia. Só há uma opção de ônibus para ir da casa dela até a estação de trem. A única alternativa é a van. O pior trecho é o do trem, ela conta. As composições demoram muito paradas em cada estação.
— Transporte público é isso, toda hora dá problema. Chegamos atrasados no serviço por causa disso, mesmo acordando todo dia na mesma hora — diz Rosalva.
Ela conta que até há um ônibus que vai direto para a Zona Sul, mas o tempo da viagem é ainda maior no trânsito pesado e com as obras na Avenida Brasil, que dá acesso ao Centro do Rio. Rosalva gostaria de morar mais perto do trabalho, mas é inviável:
— Não tem como. Tenho casa própria, e se eu tiver que morar perto do serviço, terei que pagar aluguel.
País fica para trás na América Latina
Maior economia da América Latina, o Brasil está ficando para trás em relação a outros países da região nessa área. Segundo o estudo de Frischtak, para equiparar as 15 principais regiões metropolitanas brasileiras ao padrão atual de Santiago (no Chile) e Cidade do México, modelos de mobilidade urbana na América Latina, seria preciso investir de uma só vez R$ 295,3 bilhões, ou 3% do Produto Interno Bruto (PIB).
Em duas décadas, o país teria de gastar entre 0,10% e 0,15% do PIB para alcançar as duas capitais, bem acima do 0,06% aportado entre 2018 e 2022. Para o economista, essa deficiência cobra um preço alto da economia brasileira:
— As duas áreas absolutamente críticas para o bem-estar da população e a produtividade da economia são mobilidade urbana e saneamento básico. São setores que historicamente têm subinvestimento. O Brasil é um ponto fora da curva em saneamento e mobilidade urbana.
O especialista em infraestrutura alerta que o problema não está restrito aos grandes centros. Já afeta a dinâmica de cidades médias, que convivem com engarrafamentos diários.
— Estimular o transporte individual automotivo é realmente um passo atrás. Não importa se é elétrico ou não. O transporte público de massa é que precisa de apoio (do governo) — diz Frischtak sobre o programa do governo que vai gastar R$ 1,5 bilhão para desonerar carros, caminhões e ônibus (que ficam com a menor fatia, R$ 300 milhões).
‘Gasolina na fogueira’
Se a situação já era ruim antes da pandemia, o isolamento imposto por ela foi como “jogar gasolina na fogueira”, define o pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), Rafael Pereira:
— Nos últimos 20, 30 anos, houve redução no volume de passageiros e aumento no custo da tarifa. É uma tendência, uma espiral descontrolada. E a pandemia pôs gasolina nesse movimento, com queda abrupta e mais forte do número de passageiros. Com isso, há queda na qualidade e o tempo de deslocamento só aumenta.
Doze conduções num dia
Antes das 5h, a professora de educação infantil e estudante de Letras na UFRJ Ana Caroline Fernandes, de 24 anos, já está no ônibus. É o início do percurso diário entre Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense, e o trabalho, no Vidigal, comunidade da Zona Sul do Rio.
Ela desembarca no Centro da capital e segue para o metrô. Viaja até a estação de São Conrado e logo embarca em uma van para a Praça do Vidigal. Ali, ainda pega um mototáxi para chegar à creche onde trabalha. Tudo, segundo ela, leva cerca de 2h30 em dias “tranquilos”:
— Qualquer coisa fora do normal, a conta já não fecha.
Com o fim do expediente às 15h30, ela refaz o caminho, mas não chega antes das 19h em casa. O número de conduções em um dia aumenta de oito para 12 quando vai à faculdade, na Zona Norte do Rio, contando com o ônibus interno do campus, que é gratuito. Nesses dias, Ana só chega em casa às 23h40. Dorme apenas quatro horas. Não à toa, reserva os fins de semana só para estudar e dormir.
— Sinto que nunca descanso — conta.
Para economistas, esse desgaste joga contra a produtividade do trabalhador brasileiro. Segundo Pereira, embora o tempo de deslocamento seja maior para os mais pobres, os mais ricos sofrem cada vez mais. O aumento da frota nas ruas agrava engarrafamentos e torna o problema de todos:
— Mesmo que persista um grau de desigualdade, a situação está começando a pegar todo mundo.
Fonte: Revista Ferroaria