Para especialistas em mobilidade, é preciso desconstruir conceito de cidades que priorizam carros e valorizar a vida
Embora o governo que assumiu em janeiro não tenha apresentado um plano específico com foco na segurança viária, existem oportunidades atualmente nessa agenda que precisam ser aproveitadas. Uma delas é que 2023 é o ano de revisão das ações do Plano Nacional de Redução de Mortes e Lesões no Trânsito (Pnatrans). “A última vez que isso foi feito, em 2021, trouxe grandes avanços ao incorporar o conceito de Visão Zero e a abordagem do sistema seguro de mobilidade. Em suma, o governo passa a reconhecer que nenhuma morte no trânsito é aceitável, e toma para si a responsabilidade de fazer o que está ao seu alcance para reduzir esse problema”, explica Paula Santos, gerente de mobilidade ativa do WRI Brasil.
E a redução da mortalidade e o aumento da segurança podem ser feitos de diversas maneiras, tais como projetar vias mais seguras, adequar a infraestrutura construída de modo a coibir comportamentos perigosos pelos motoristas, realizar um monitoramento mais rigoroso das ações pela segurança viária e dos seus impactos, reduzir as velocidades e avaliar iniciativas que têm trazido bons resultados, entre outras formas.
De acordo com Paula, o maior desafio para fazer com que nossa letalidade no trânsito seja revertida é o aspecto cultural. “Nos acostumamos com cidades que priorizam os carros, em detrimento das pessoas, sejam elas pedestres, sejam ciclistas, crianças ou idosos. Mas é preciso priorizar a vida”, afirma.
Uma das maneiras mais eficientes de se fazer isso, segundo ela, é incorporar o entendimento internacional e o que recomenda a Organização Mundial de Saúde (OMS) para redução na velocidade das vias urbanas para 50 km/h, em avenidas em que o trânsito dos carros é segregado, e para 30 km/h, naquelas vias em que há mais interação entre carros, pedestres e ciclistas, que são os usuários mais vulneráveis. “São mudanças relativamente pequenas, mas se calcula que, para cada 1% de redução nas velocidades, diminuam em 4% os sinistros fatais. Infelizmente, essa é uma ação que enfrenta resistência no governo e na sociedade em geral, embora os impactos nos tempos de deslocamento sejam mínimos”, diz Paula.
Boas práticas
Entre as iniciativas que têm apresentado resultados positivos, a gerente de mobilidade ativa do WRI Brasil menciona a Rede Ruas Completas SP, formada por 20 cidades paulistas comprometidas com planos e intervenções viárias para tornar as ruas mais seguras e distribuir o espaço de forma mais equitativa entre carros, pedestres e ciclistas. “Várias cidades da rede implementaram projetos que modificaram o desenho das vias e têm conseguido, assim, reduzir velocidades e aumentar a sensação de segurança das pessoas”, explica.
Na contramão
Mesmo representando uma oportunidade para a sociedade, a revisão do Pnatrans não será capaz, por si só, de resolver todos os problemas do País em segurança viária. De acordo com Sergio Avelleda, fundador da Urucuia e coordenador do núcleo de mobilidade urbana do Laboratório de Cidades do Insper, é necessário que a gestão federal tenha foco em conceitos modernos de mobilidade, como investimento em transporte público, em mobilidade ativa e em modais e iniciativas não poluentes, todas elas medidas com impacto positivo na segurança.
Mas, ao menos no momento, não há nenhum sinal dessas iniciativas. Pelo contrário. No dia 25 de maio, um conjunto de medidas para baratear os carros com valor até R$ 120 mil foi anunciado pelo governo federal.
Em resumo, trata-se da redução de impostos sobre o IPI (Imposto sobre Produtos Industrializados) e o PIS/Confins, que pode resultar em descontos nos preços dos automóveis entre 1,5% e 10,96%. O aumento nas vendas de carros, primeiro impacto que a medida traria, foi apontado como prejudicial em vários aspectos, como piora no trânsito das grandes cidades, poluição, agravamento da crise nacional do transporte público e da segurança viária, entre outros fatores.
“O anúncio é um retrocesso. Mais de 40 mil pessoas morrem por ano em acidentes de trânsito no Brasil, números compatíveis com uma pandemia e estudos demonstram que, quanto mais carros trafegando nas ruas, mais mortes”, afirma Avelleda. Segundo ele, a medida nem mesmo geraria empregos, já que hoje as montadoras são altamente automatizadas e grande parte da cadeia de autopeças está fora do Brasil. “Não consigo ver nenhum aspecto positivo. E acredito que o mais grave é o estímulo ao automóvel individual particular, que é o mesmo que fomentar a insegurança viária”, finaliza.
Fonte: Mobilidade Estadão