Para tornar as cidades mais equitativas, o planejamento deve contemplar atividades de cuidado, hoje ainda majoritariamente femininas
Em 2013, a espanhola Inés Sánchez de Madariaga tornou o invisível visível. Professora de planejamento urbano da Universidade Politécnica de Madri, Inés mostrou que atividades como ir ao mercado, à farmácia, levar os filhos ao médico, à escola e à praça compõem mais de 40% dos motivos das viagens de mulheres na capital da Espanha, e somente 8% das de homens. Nenhuma novidade, você pode pensar. Mas o ponto importante é: será que nossas cidades levam isso em conta?
É reducionista e violento tratar de mulheres apenas no sentido doméstico. Mas é inegável que a vida cotidiana do público feminino que vive nos centros urbanos encontra obstáculos que parecem resultado de um planejamento que ignora suas necessidades. No Brasil, mulheres dedicam mais tempo do que homens às atividades de cuidado — um acúmulo de tarefas que sobrecarrega, especialmente, as mais pobres.
Por causa dessas atividades não remuneradas, mulheres também tendem a realizar viagens encadeadas: elas saem de casa para levar o filho à escola, vão ao trabalho, passam no supermercado e, finalmente, retornam para casa.
Essas atividades, chamadas “reprodutivas”, aparecem fragmentadas nas pesquisas origem-destino, que embasam políticas públicas urbanas. A um olhar desatento, podem parecer insignificantes em comparação à maciça fatia de viagens de trabalho. E podem ser confundidas com atividades de lazer ou mesmo pessoais.
Perfil dedicado
A esse padrão de deslocamento, Inés chamou de “mobilidade do cuidado”. Ao apontá-lo e nomeá-lo, a pesquisadora mostrou que cuidar demanda tanto esforço e dedicação quanto um trabalho remunerado. Logo, para tornar as cidades mais equitativas, o planejamento urbano deve considerá-la.
O conceito pede uma reflexão do quanto as cidades que privilegiam a infraestrutura para os carros ou a oferta de ônibus no horário dos deslocamentos casa-trabalho, por exemplo, deixam à margem uma ampla parcela da população.
As abordagens interseccionais sobre o tema mostram que as precariedades encontradas na vida cotidiana são maiores quando marcadores socioeconômicos, como gênero e raça, se somam.
É o caso de São Paulo, onde um estudo da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Urbano mostrou, com base na pesquisa origem-destino, que, quanto menor a renda, mais as mulheres se deslocam pelo motivo educação, levando os filhos à escola, e mais andam a pé e de ônibus.
Parceria
Recentemente, WRI Brasil e Fundação Grupo Volkswagen se uniram para avaliar os impactos da construção de uma praça em uma região vulnerável em Porto Alegre (RS). Depois das crianças brincando, eram as mulheres suas principais frequentadoras, presentes em número 4,5 vezes superior do que os homens e, na maioria das vezes, acompanhando crianças.
Planejar as cidades para elas, em especial para quem reside em regiões periféricas, significa qualificar o transporte coletivo, a mobilidade ativa, as ruas, as áreas verdes e de lazer. Significa oferecer iluminação pública adequada para que o espaço urbano atue prevenindo e coibindo violências cotidianas.
Não é o que ocorre: dados da Associação Nacional de Transportes Públicos (ANTP) mostram que os investimentos e outros custos associados à infraestrutura para carros, por exemplo, são cinco vezes maiores do que os do transporte coletivo.
Adaptações necessárias
Em São Paulo, segundo o Instituto Cordial, 40% das calçadas estão abaixo da largura mínima exigida por lei. A situação se agrava em regiões mais distantes do centro, que também têm menos acesso a áreas verdes e piores condições de iluminação. Em todos esses casos, são as mulheres as mais prejudicadas.
Mas, se elas perdem, perde também toda a sociedade. O cuidado é uma relação. Planejar a cidade para mulheres é planejá-la, também, para seus dependentes, crianças e idosos. Atentar às questões de gênero passa por promover a igualdade das representações no planejamento e na tomada de decisão de prefeituras e secretarias.
E passa, ainda, por propostas e soluções com base em debates coletivos que considerem os usos diversos que as pessoas fazem da cidade. A sociedade sucumbe sem o trabalho do cuidado – logo, essa é uma responsabilidade de todos.
Fonte: Mobilidade Estadão