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A CIDADE DO SEU NEGÓCIO

Caio Vassão
Caio Vassão
Head de inovação na Kyvo e fundador da Bootstrap. Arquiteto e urbanista, há mais de 25 anos pesquisa as complexas relações entre urbanidade, tecnologia, comunidades e inovação. Professor e pesquisador coordenador do grupo Cenários Urbanos Futuros (RITe-FAUUSP), além de consultor em projetos de inovação e transformação organizacional, com abordagem do Metadesign para processos de transformação cultural e urbana.

Do ponto de vista do cidadão, a cidade é a rede de lugares que de fato frequenta, o que chama de “minha cidade”.

A cidade é feita de redes de relações. Relações pessoais, familiares, de afeto. Relações empresariais, comerciais, de influência e pertencimento. De governo e governança, de troca de informações.

Cada instituição – quer ela seja empresarial, governamental, educacional, etc. – compõe uma rede que está na cidade. Nós confundimos a instituição com um local. Dizemos: “vou para a empresa”, ou “para a escola”, etc. Mas, a instituição é, necessariamente, uma entidade, e não um local. A instituição usa um local – mais comumente, uma rede de locais – para sediar suas atividades.

Do ponto de vista do cidadão, a cidade não é a coleção completa de edifícios, sistema viário e infraestrutura. Do seu ponto de vista, a cidade é a rede de lugares que de fato frequenta, o que chama de “minha cidade”. Mesmo que essa rede de lugares se espalhe por distâncias enormes, e ignore a maior parte do tecido urbano que está no “meio do caminho”, entre os lugares que reconhece como “seus”. O cidadão reconhece uma rede de lugares que é a composição de locais que frequenta, entrando em contato com a rede que as instituições compõem para desempenhar suas tarefas e atividades.

Historicamente, as instituições construíam essa rede de modo estritamente funcional. O gestor da instituição ponderava: onde coloco, no território da cidade, meus edifícios e pontos de articulação logística para que possa desempenhar as funções da empresa, escola ou instituição governamental? 

No entanto, nos últimos anos, emerge um fenômeno interessante que questiona essa abordagem, e convida as instituições a ponderarem essa rede de lugares com mais cuidado e sofisticação.

À medida que a telecomunicação se torna banal e disponível para a vasta maioria da população, dois fenômenos acontecem (o distanciamento social da pandemia só acelerou isso):

1 – A instituição revela que não está, e nunca esteve, presa a lugar algum. Ela apenas utiliza, de modo oportuno, uma rede de lugares que cumprem uma tarefa necessária para ela.

2 – O cidadão passa a estabelecer relações de pertença que não estão mais vinculados a lugares específicos, ou a instituições específicas. E ele próprio se desapega do território como a forma fundamental de estabelecer relações de afeto e confiança – formar comunidade.

Esses dois fenômenos poderiam indicar que a cidade deixaria de ter uma função relevante na vida das pessoas, que viveríamos em um “ciberespaço” de relações de pura comunicação sem matéria, território ou corpo. Mas, o que acontece é o oposto: toda e qualquer atividade – quer seja uma aula do ensino médio, um encontro amoroso, o armazenamento de dados “na nuvem”, ou um encontro estratégico do conselho de uma empresa – sempre acontece em “algum lugar”, mesmo que seja em uma rede virtual que conecta locais distantes entre si. Independentemente do quanto nos comuniquemos à distância (tele-comunicação) sempre estamos em algum local, e nossos equipamentos (os servidores da nuvem, a sala de trabalho, o computador por meio do qual entramos na teleconferência) também estão em algum local.

Então, o que se passa é uma completa reconfiguração da noção de “lugar”, como venho falando aqui desde minha primeira contribuição ao Portal Connected Smart Cities. É chegada a hora de falar da consequência disso para os modelos organizacionais das empresas, escolas, instituições públicas ou privadas, grandes ou pequenas.

A rede que você desenha é a cidade que você habita.

As melhores e mais evidentes expressões dessa nova lógica do lugar são os eventos que se multiplicam ferozmente mundo afora: Burning Man, South By Southwest, Festival Path, Rec n’ Play, Sta Rita Hacktown, dentre outros.

Quem organiza esses eventos compreendem que eles não mais precisam acontecer em um único edifício, pavilhão ou centro de eventos, como no modelo tradicional de eventos culturais: podem articular um conjunto de locais em uma rede de espaços coordenados por uma mesma identidade, uma mesma curadoria, um mesmo ponto de vista dos temas e assuntos ali tratados.

Durante um período específico, o tecido de uma região urbana é reconfigurado pela presença de comunicação visual pelas ruas, depois pela circulação intensa de pessoas, que visitam essa rede de espaços, à caça da palestra, atividade ou performance que lhe interessa.

As pessoas visitam esses eventos por três motivos: 

– Conhecer novas ideias, aprender algo novo.

– Conhecer novas pessoas, fazer networking.

– Conhecer a cidade na qual está sediada o evento.

Ou seja, esses eventos cumprem a mesma função daqueles eventos que aconteciam, e ainda acontecem, dentro de pavilhões fechados. Mas, com uma grande vantagem: como o visitante não está  “preso” dentro do pavilhão, ele é convidado a circular pela cidade. Ele não apenas já está “turistando” pela cidade enquanto visita os diversos venues do evento, como também estende as atividades de networking para outros venues da cidade – barzinhos, cafés, restaurantes, pontos turísticos, livrarias, etc.

Ou seja, ao articular intencionalmente e conscientemente uma “presença urbana” para o evento, seus organizadores também estimulam a economia local, convidando os visitantes a construírem uma experiência urbana muito mais rica. Nos eventos tradicionais, os visitantes tinham que se deslocar do pavilhão de eventos para a cidade, já que a maior parte desses pavilhões se encontra em um tecido urbano de baixa densidade (não há equipamento urbano algum no entorno) e distante das regiões em que de fato acontece a vida daquela cidade, longe daquilo que os visitantes e turistas querem conhecer. Esses eventos tradicionais perdem a oportunidade de articular-se com um ecossistema já desenvolvido, disponível, acolhedor, rico em experiências e oportunidades. E assim deixam de construir mais uma camada das redes urbanas que compõem a cidade.

Um aspecto interessante desses eventos é que toda a comunicação entre os organizadores e os visitantes acontece por meio de aplicativos e soluções online: a programação pode ser atualizada em tempo real, atividades improvisadas podem ser comunicadas rapidamente, avisos e notificações são emitidos oportunamente. Podemos até dizer que a qualidade das soluções digitais para tais eventos é a chave do sucesso e da qualidade da experiência do participante como um todo. Em um certo sentido, esses eventos não têm um centro no território – uma central de atendimento, uma região ou edifício central que é a referência geral do evento. O aplicativo do evento é como um “centro virtual”, coordenando uma rede distribuída de atividades e as relações que essas têm com o território, informando os participantes em tempo real.

O que proponho é que toda e qualquer instituição – independentemente de sua função social – possa se articular de um modo similar a esses eventos. E não apenas em uma época do ano, durante um breve período de tempo, e sim como uma presença relativamente permanente na cidade.

Uma escola, por exemplo, não precisa estar concentrada em um único edifício: pode estar espalhada por uma série de edifícios que oferecem as condições para que suas atividades aconteçam. Algo assim já está sendo experimentado pelas empresas, com os escritórios “virtuais” ou “avançados”, que se distribuem pelo tecido urbano para ficarem mais próximos da moradia dos colaboradores. Mas, também a gestão pública poderia se beneficiar dessa articulação de uma rede locais para compor uma presença oportuna no território, possivelmente contribuindo para uma melhor participação da sociedade no governo.

Proponho que as instituições – os negócios, as universidades, o governo, etc. – desenhem intencionalmente e de modo competente uma rede de locais que sustentarão suas atividades de modo mais econômico, dinâmico, sofisticado e com significado mais acessível para seus usuários, parceiros, clientes, etc.

Na prática, essas redes que desenhamos são a cidade que habitamos: é nelas que construímos significado compartilhado e geramos riqueza.

Neste sentido, não se trata de desenhar “distritos de inovação”, e empreender custosas edificações concentradas em um bairro, possivelmente afastado. E sim de apropriar-se de uma rede de imóveis existentes, requalificando-os e dando a eles novos significados, que são conferidos pelas atividades e pela identidade da instituição que articula essa rede. Nessa “Cidade Distribuída”, o centro está em todos os lugares e não existe periferia.

Novos programas urbanos

Para que os imóveis possam ser apropriados por essas “novas redes urbanas”, é fundamental que tenham uma arquitetura flexível: precisamos ir além do “uso misto” e construir imóveis e regiões urbanas de “uso flexível e adaptável”, capazes de acolher a maior variedade possível de atividades.

Por muito tempo, confundimos os imóveis com as funções ali sediadas: um edifício seria considerado uma escola porque estava organizado de um modo que poderia sediar com qualidade apenas as funções de uma instituição de ensino. No entanto, para que essas redes urbanas possam ser articuladas e re-articuladas não apenas de modo dinâmico, mas também rápido e ágil, as funções dos edifícios precisam ser também flexíveis: devem ser capazes de, por meio de pequenas alterações, acolher os mais diversos eventos e atividades, incluindo espaços de trabalho, salões amplos para palestras e atividades coletivas, lugares para atividades concentradas, locais para encontros não planejados, etc.

Tais redes urbanas não terão presença fixa no território: elas próprias não são “imóveis”. Elas são o resultado da apropriação, da articulação de um conjunto de imóveis que capaz de expressar a presença urbana da instituição. Sua articulação cria uma “cidade dentro da cidade”, uma “rede dentro de outras redes”. O visitante, cliente ou participante sabe que está “naquela instituição” porque participa de uma atividade que expressa a identidade da instituição, e não porque está em um endereço ou edifício que é a sede da instituição.

Isso exige que a cidade seja concebida, coordenada e gerida a partir de novos programas urbanos, que reconheçam esse aspecto dinâmico e ágil das novas relações mediadas pela telecomunicação, e seja capaz de acolher novas e mais sofisticadas redes urbanas.

Um aspecto fundamental da proposta que faço aqui é que não é necessária a construção de novas edificações, e sim a requalificação do estoque existente de edifícios para que possam entrar nesse “jogo urbano” de construção de redes de pertença e criação de valor.

Ou seja, é possível convidar as instituições a abandonar suas sedes fixas, e assim passem a “desenhar suas cidades” como redes distribuídas (sem centros fixos) no tecido urbano. Essa nova abordagem de planejamento da presença urbana das instituições pode ser um dos mais importantes vetores para a conservação do patrimônio edificado, para o incremento da sustentabilidade do tecido urbano e para a criação de valor a partir de empreitadas mais baratas e simples, do ponto de vista da construção civil.

Desenhar “a cidade do seu negócio” não é a construção de novas edificações ou de um novo tecido urbano, é a requalificação criativa do tecido urbano existente, conectando o negócio ou instituição com redes urbanas já existentes, criando relações de sinergia entre elas e com os hábitos urbanos já desenvolvidos. É enriquecer o ecossistema urbano com intervenções simples, ágeis e de alto impacto cultural, econômico e social.

As ideias e opiniões expressas no artigo são de exclusiva responsabilidade do autor, não refletindo, necessariamente, as opiniões do Connected Smart Cities  

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