Por que é necessário falar sobre os impactos do ambiente construído das cidades, além dos motivos óbvios que são o custo da reconstrução e a perda das casas onde as pessoas poderiam morar depois de uma possível paz?
36.000 prédios foram destruídos na cidade de Aleppo durante a guerra da Síria desde 2011. 90% dos prédios na cidade de Mariupol foram parcialmente ou completamente destruídos desde o começo da guerra atual na Ucrânia. No fim da segunda guerra mundial 85% do centro histórico de Varsóvia havia sido completamente destruído com somente 22.000 habitantes ainda morando na cidade (em 1939 a população era de 1,3 milhão).
Sem dúvida a grande tragédia de qualquer guerra em qualquer lugar do mundo são as inúmeras perdas de vidas, os milhões de pessoas sendo forçados a abandonar o próprio país, o lar que tinham criado ao longo de uma vida. Então por que é necessário falar sobre os impactos do ambiente construído das cidades, além dos motivos óbvios que são o custo da reconstrução e a perda das casas onde as pessoas poderiam morar depois de uma possível paz?
A cidade de Varsóvia fez um projeto inigualável na reconstrução do centro histórico e foi reconhecido pela UNESCO como patrimônio cultural. Aleppo até agora não atraiu o interesse global, nem teve a estabilidade política e os recursos para assumir essa tarefa. Mesmo nesse momento pós-guerra se manifestam as desigualdades globais.
As nossas cidades não são meramente lugares para cumprir as nossas necessidades do dia-a-dia, como ganhar dinheiro, ter uma casa que nos oferece abrigo, poder chegar tanto para a festa de aniversário da tia como para a consulta do médico. As cidades têm a capacidade de nos vincular com a nossa história como indivíduo e como sociedade. Caminhar pelas ruas do projeto modernista de Brasília, onde manifestações políticas aconteceram e onde bebemos umas cervejas a mais com os amigos durante a adolescência, nos conecta de uma vez com umas das visões programáticas para a sociedade brasileira, com as suas contradições, opressões e desigualdades que a estruturam e com a nossa experiência pessoal de deixar de ser criança.
Estamos em um momento da nossa sociedade, no qual é crucial não esquecer a nossa história, de não esquecer para onde a polarização, a propaganda com fake news e o desrespeito à dignidade humana podem levar. As cidades são um lugar central para uma cultura da memória. Nesse sentido, a destruição dos centros urbanos durante a guerra vai além da destruição da vida e do abrigo humano. Nos rouba lugares de identificação, lugares que criam sentido para nós como sociedade e nos orientem nas decisões futuras.
Felizmente poucas cidades no mundo já passaram ou vão passar por uma experiência tão extrema como a guerra. Isso não significa que não seja necessário olhar para os espaços urbanos com a lente da construção de identidade e criação de memória. Prédios relevantes como o Museu Nacional, no Rio de Janeiro, não precisaram de um ataque violento para desaparecer do nosso mapa sociocultural. A seleção de monumentos que decoram as praças ainda conta uma história enviesada do Brasil. O sistema econômico-financeiro continua colocando mais importância na especulação imobiliária do que no cuidado com prédios que formam as camadas da história da cidade.
A cultura da memória das nossas cidades pode assumir diferentes formas. O governo da Polônia e de Varsóvia decidiu reconstruir o centro histórico seguindo exatamente os planos, materiais e estruturas de antes. Em Berlim os habitantes decidiram em um protesto público por deixar de pé a Gedächtniskirche. Essa igreja foi parcialmente destruída na guerra e o voto público permitiu uma construção nova só mantendo o restante da estrutura antiga. Se tornou um memorial que lembra as pessoas todos os dias do que aconteceu. Aleppo ainda nem teve o luxo de tomar essa decisão. Mas já foram feitas tentativas de resgatar e digitalizar tudo o que havia de mapas, fotos e desenhos do centro histórico para ter uma base virtual. Para lembrar da cidade e eventualmente fazer esforços de reconstrução tanto dos prédios como das identidades perdidas.
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Diretora do programa Transformação Urbana da cooperação técnica Brasil-Alemanha da Deutsche Gesellschaft für Internationale Zusammenarbeit (GIZ) GmbH, onde coordenou, junto ao Ministério de Desenvolvimento Regional, a formulação da Carta Brasileira para Cidades Inteligentes. Especialista em mudança organizacional, desenvolvimento urbano e transformação digital, com atuação na Índia, Europa e no Brasil.