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Gestão urbana brasileira com participação popular inspira cidades no exterior

Entre as iniciativas estão mutirões para construção de moradias de interesse social com assistência técnica e jurídica, orçamento participativo, programas de segurança alimentar e soluções no transporte público

Entre 1986 e 2000, Prefeituras de diversas cidades brasileiras se destacaram por políticas urbanas e habitacionais bem-sucedidas. É o que aponta pesquisa da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da USP, que resgata o período chamado Ciclo Virtuoso de Prefeituras democráticas e populares. Mesmo em um contexto econômico e político adverso no pós-ditadura, as administrações conseguiram, por meio de gestão descentralizada, implementar projetos inovadores, como os mutirões para a construção de habitações de interesse social com assistência técnica e jurídica, urbanização de favelas, criação de espaços culturais e esportivos, implantação de corredores exclusivos de ônibus, programas de segurança alimentar, tarifa zero em transportes públicos e adoção do orçamento participativo, dentre outros.

Segundo o estudo, algumas das iniciativas desse período foram replicadas em outras cidades brasileiras e também ganharam destaque internacional, servindo de referência para outros países como a Noruega (Oslo), que incorporou modelos inspirados nos corredores de ônibus brasileiros, conhecidos localmente como o BRT- Bus Rapid Transit. Foram analisadas experiências das cidades de São Paulo (SP), Belo Horizonte (MG), Porto Alegre (RS), Recife (PE) e Belém (PA).

De acordo com o autor da pesquisa, o arquiteto e urbanista Pedro Freire de Oliveira Rossi, “a participação popular nas decisões sobre políticas urbanas das cidades foi determinante para os resultados positivos observados na pesquisa”. Intitulada O ciclo virtuoso das prefeituras democráticas e populares, a tese foi orientada pela Professora Emérita da FAU, Ermínia Maricato, ex- Secretária Municipal da Habitação e Desenvolvimento Urbanos durante a gestão da prefeita Luiza Erundina no período de 1989 a 1992.

Alguns dos grandes destaques da gestão de Ermínia foram as políticas que deram origem aos mutirões para construção de casas populares, um sistema de autogestão onde as famílias beneficiadas trabalhavam na construção de suas próprias moradias, com apoio técnico, financeiro e de infraestrutura do poder público e de associações de arquitetos e engenheiros. A professora Ermínia também teve papel fundamental na criação e estruturação do Ministério das Cidades que ocorreu em 2003 no primeiro mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

De acordo com Ermínia, o surgimento das Prefeituras democráticas e populares resultou de uma conjuntura política e social inédita no Brasil, marcada por forte industrialização, acelerada urbanização em contexto político ditatorial. “Foi nesse cenário que diversos atores sociais se organizaram para reivindicar melhores condições de vida para a população que chegava às cidades em meio ao intenso fluxo migratório”, explica. Entre esses grupos, estavam o movimento operário, movimentos sociais urbanos, Comunidades Eclesiais de Base inspiradas na Teologia da Libertação, o movimento estudantil, além de intelectuais e produtores de cultura e arte.

No caso de São Paulo, Pedro Rossi lembra que a prefeita Luiza Erundina, ao assumir o cargo, formou uma equipe técnica e intelectual voltada para áreas sociais, com nomes como Paulo Freire (Educação), Paul Singer (Planejamento), Ermínia Maricato (Habitação) e Marilena Chaui (Cultura), fortalecendo os projetos sociais implementados na cidade.

O urbanista explica que, embora cada região brasileira tenha desenvolvido iniciativas específicas que se aplicavam ao contexto local, as demandas sociais e políticas de arquitetura e urbanização das cidades apresentavam pontos em comuns como administração descentralizada, orçamento participativo, urbanização de favelas, implantação de corredores de ônibus exclusivos e mutirões de construção de casas com assistência técnica, dentre outros.
Em São Paulo, logo no início de sua gestão, a prefeita Luiza Erundina criou Subprefeituras com autonomia financeira e operacional, permitindo uma administração mais descentralizada e orientada por conselhos regionais com participação direta da população.

A Secretaria Municipal da Habitação e Desenvolvimento Urbano, coordenada pela professora Ermínia Maricato implementou diversas políticas sociais, destacando-se as propostas de regularização fundiária de áreas urbanizadas precárias que garantiam segurança jurídica a famílias que viviam em favelas e loteamentos irregulares, a instalação de água, energia elétrica e esgoto, além de drenagem e estabilização do solo. A gestão também lançou seu programa mais emblemático que ganhou visibilidade internacional, sendo estudado por urbanistas, arquitetos e sociólogos de universidades da Europa e América Latina: a Política Habitacional por Autogestão, que deu origem aos mutirões.

Por esse modelo, integrantes de movimentos sociais organizados em cooperativas acompanhavam todas as etapas da produção habitacional e assumiam papel central ao lado do poder público. Eles participavam da escolha do terreno, do desenvolvimento do projeto, da execução das obras, do controle dos recursos e da prestação de contas. A Prefeitura garantia suporte técnico em todo o processo, com equipes de arquitetos, engenheiros, assistentes sociais e advogados.

Belo Horizonte (MG)

Em Belo Horizonte, a gestão de Patrus Ananias (1993–1996) estruturou a política municipal de habitação de cunho social, ampliando a participação popular na decisão e supervisão dos empreendimentos. Entre as ações implementadas estavam o orçamento participativo, a captação de recursos federais para construção de casas populares, a regularização fundiária, a urbanização de vilas e favelas, intervenções estruturais em áreas de risco, programas de reassentamento, melhorias habitacionais, produção de moradias em autogestão e apoio à autoconstrução.

Em 1993, diante de uma crise que atingia 62 mil famílias em situação de inanição, um dos projetos que mais se destacaram em Belo Horizonte foi o vinculado à Secretaria Municipal de Abastecimento, que coordenava ações de incentivo à produção de alimentos, regulação de preços e oferta de alimentação saudável. O município instalou mais de 100 pontos de venda em áreas centrais e periféricas, conectando produtores e consumidores e oferecendo alimentos com descontos de até 50% em relação ao mercado. A iniciativa incluiu ainda a reabertura dos restaurantes populares, desativados durante a ditadura militar, garantindo refeições nutritivas a baixo custo.

Porto Alegre (RS)

Em Porto Alegre, os governos liderados por Olívio Dutra, Tarso Genro e Raul Pont marcaram as principais transformações urbanísticas da cidade. Entre as iniciativas implementadas estavam a criação e consolidação do Orçamento Participativo, a formação de conselhos e a ampliação dos processos participativos no planejamento urbano, além da reformulação do Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano Ambiental (PDDUA). Também se destacaram as diretrizes de sustentabilidade, o fortalecimento institucional, ações de regularização fundiária e de infraestrutura básica, e melhorias na mobilidade, como corredores de ônibus e integração do transporte público. Dentre essas políticas, o Orçamento Participativo foi a que ganhou maior projeção internacional, sendo apresentado como caso exemplar de participação cidadã no Fórum Social Mundial. O modelo tornou Porto Alegre uma referência global em democracia urbana e inspirou experiências semelhantes em diversas cidades ao redor do mundo.

Belém (PA)

Durante os dois mandatos de Edmilson Rodrigues (1997–2004), Belém consolidou um modelo próprio moldado pelo território amazônico e pelas desigualdades socioespaciais da capital paraense. De acordo com Pedro Rossi, três frentes marcaram a transformação urbana promovida pela Prefeitura: o fortalecimento da participação social, o combate à desigualdade territorial e a incorporação das especificidades ambientais na política urbana.

O Orçamento Participativo de Belém foi o eixo estruturante da gestão. As plenárias tiveram grande participação das periferias e das áreas insalubres, permitindo que bairros historicamente excluídos influenciassem diretamente os investimentos municipais. Na prática, isso direcionou grande parte do orçamento para drenagem, saneamento e urbanização de áreas alagadas — prioridades que refletiam a geografia singular da cidade. Urbanizar baixadas, abrir vias de acesso, instalar passarelas e canais de drenagem tornou-se a principal política de inclusão territorial, revelando uma abordagem mais adaptada à realidade amazônica do que aos modelos do Sul e Sudeste.

Segundo o estudo, a Prefeitura colocou a geografia amazônica no centro do planejamento, propondo ações de proteção de igarapés, conservação de áreas de várzea e requalificação de espaços públicos com função ambiental. Belém sobressaiu em várias frentes de desenvolvimento social e ambiental. Em 2001, por exemplo o Banco do Povo foi reconhecido como uma das 20 melhores iniciativas em geração de renda do Brasil pela fundação Getúlio Vargas, pela Ford Foundation e pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Social. O programa Viva Mulher ganhou destaque internacional pela Organização Mundial das Nações Unidas (ONU) e o Orçamento Participativo de Belém também alcançou reconhecimento internacional, recebendo prêmios da Secretaria de Políticas Urbanas e do Centro das Nações Unidas para Assentamentos Humanos.

Recife (PE)

Em Recife como em outras capitais brasileiras, adotou-se a regionalização administrativa, criando mecanismos facilitadores de participação popular como a consolidação do Orçamento Participativo. O programa Prefeitura nos Bairros foi lançado em 1986 pelo prefeito Jarbas Vasconcelos, que deu continuidade às políticas do Plano de Regularização das Zonas Especiais de Interesse Social (Prezeis), que garantia moradia digna e a integração de assentamentos precários e informais de baixa renda na estrutura urbana formal. Durante o mandato de Roberto Magalhães (1997-2000), mesmo sendo de um partido de orientação conservadora, manteve o Orçamento Participativo, demonstrando que a estrutura previamente estabelecida era sólida para sustentar-se sob diferentes lideranças.

Replicação das ideias democráticas

Segundo o estudo, iniciativas de Prefeituras com gestão democrática se espalharam por todas as regiões do Brasil, indo além das capitais. Para a professora Ermínia Maricato, os casos analisados demonstram que, quando há participação social, planejamento técnico e compromisso político, as políticas urbanas conseguem gerar resultados duradouros — mesmo em momentos de crise econômica e instabilidade institucional. “As soluções desenvolvidas nessas gestões continuam relevantes e podem orientar os debates sobre habitação, mobilidade e governança urbana no País”, afirma.

A tese O ciclo virtuoso das prefeituras democráticas e populares conquistou o Prêmio Arquisur 2025, concedido pela Associação das Escolas e Faculdades de Arquitetura Públicas da América do Sul (Arquisur), que reconhece pesquisas de excelência na área de arquitetura e urbanismo. A pesquisa também resultou em uma plataforma que reuniu todo o acervo analisado, como cartazes, panfletos, fotografias, jornais e relatórios de gestão.

Mais informações: pedrorossi@usp.br, com Pedro Freire de Oliveira Rossi; e erminia@usp.br, com Emínia Maricato

Fonte: Jornal USP | Ivanir Ferreira

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