A crise do ônibus urbano é tripla: demanda, finanças e legitimidade. Entenda por que a discussão de tarifa zero e subsídios não resolve o problema e como o modelo Contrato de Performance pode ser a virada de jogo para tornar o transporte coletivo atraente e eficiente no Brasil.
Faz uma década que o transporte foi reconhecido como direito social pela Constituição Federal (Emenda nº 90/2015). Um marco histórico: afinal, se locomover é pré-condição para acessar saúde, educação e trabalho.
Mas, olhando para o ônibus urbano no Brasil, nota-se uma crise tripla: de demanda, com menos passageiros; financeira, com operadores endividados; e, sobretudo, de legitimidade. Para muita gente, o ônibus virou sinônimo de baixa qualidade, desconforto e insegurança — a opção de quem não tem escolha.
A discussão de quem banca
O debate atual gira em torno de “quem paga a conta”. De um lado, defensores do tarifa zero, que o veem como a materialização do direito constitucional. De outro, quem defende subsídios focalizados, alertando para os riscos fiscais da gratuidade universal.
Mas esse embate, embora importante, não toca o cerne do problema. Mudar quem financia o sistema — se o usuário ou o poder público — não basta para torná-lo atraente.
O modelo atual, com ou sem subsídio, não incentiva os operadores a conquistar usuários. Não há estímulo para que o transporte coletivo aumente sua participação nas cidades.
O resultado é previsível: um serviço que sobrevive, mas dificilmente evolui. Um modo de transporte resignado, mas não desejado.
O jogo desigual: carro e apps versus ônibus
Para entender o impasse, é preciso olhar para os concorrentes: o carro particular e os aplicativos de transporte.
O transporte individual opera em um ciclo virtuoso de desejo e inovação. A indústria automobilística e as plataformas de mobilidade não vendem só deslocamento — vendem status, autonomia e conforto.
Investem pesado em marketing, lobby, tecnologia e experiência do usuário. Conquistam emocionalmente.
E o mais grave: externalizam os custos sociais — poluição, congestionamento, acidentes, ocupação do espaço urbano. Tudo isso é pago coletivamente, enquanto o motorista individual desfruta de um “subsídio implícito” disfarçado de liberdade.
Já o transporte coletivo opera na lógica da contenção de custos.
Nos modelos tarifados, o lucro vem de economizar — cortando frota, salários e manutenção.
É o ciclo vicioso clássico: Baixa receita → Corte de custos → Piora do serviço → Queda de demanda.
Enquanto o ônibus gera benefícios sociais enormes — menos poluição, menos congestionamento, mais equidade —, nenhum desses ganhos retorna diretamente para quem o opera. Os efeitos positivos se dissipam, sem recompensa.
A virada do jogo é pagar pelo sucesso
Sair desse atoleiro exige mais do que discutir tarifas. É preciso reconstruir o valor estratégico do transporte coletivo e mudar os incentivos.
Um ônibus em faixa exclusiva pode transportar de 10 mil a 25 mil passageiros por hora — enquanto uma faixa para carros leva, em média, 1.500. Além de eficiência, o coletivo reduz a sinistralidade de trânsito e promove equidade. Não seria impossível que nossas grandes cidades alcançassem 30% a 40% das viagens por transporte público – desde que os operadores tenham incentivo para isso.
E se, ao invés de pagar o operador apenas por quilômetro rodado ou custo de operação, vincular parte de sua remuneração ao sucesso em atrair passageiros e aumentar a participação do modo de transporte? Países como a Noruega e Nova Zelândia pactuam contratos de remuneração por diminuição do uso do automóvel e por ganho de novos usuários, respectivamente.
Esse modelo é conhecido como Contrato de Performance Modal, um pay-for-performance, onde é possível ganhar mais quem entregar mais. Isso força o operador a investir em conforto, segurança, informação em tempo real, marketing e imagem positiva do transporte público.
O operador deixa de ser um prestador passivo e se torna um parceiro ativo na construção de uma cidade mais equilibrada.
Conclusão
A crise do ônibus não será resolvida apenas com novos subsídios ou cortes de tarifa.
Ela só será superada quando o interesse econômico e o interesse social estiverem alinhados, após quebrarmos o tabu de que a prestação de serviços de transportes deve ser algo que apenas pague seus custos.
Se queremos alastrar o transporte coletivo nas cidades, precisamos dar incentivos suficientes para que os operadores vejam a conquista de usuários e a melhora urbana como um excelente negócio.
As ideias e opiniões expressas no artigo são de exclusiva responsabilidade da autora, não refletindo, necessariamente, as opiniões do Portal CSC.

Urbanista, especialista em Engenharia de Tráfego, Planejamento e Gestão de Trânsito, com MBA e experiência profissional em Gestão Pública. Fundadora da empresa URBdata®, coordena o curso de Especialização em Mobilidade Urbana Sustentável da Unyleya e preside o Instituto URBbem.






