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Políticas de inovação pelo lado da demanda: um caminho estratégico para o Brasil

Felipe Massami Maruyama
Felipe Massami Maruyama
Doutor e mestre em Ciências pela Escola Politécnica da USP, Felipe Maruyama tem concebido, implementado e gerido programas e políticas públicas de Tecnologia, Inovação e Empreendedorismo, nacionais e internacionais, nos últimos 15 anos. Atualmente tem liderado projetos de inovação aberta e de compras públicas de inovação no Instituto Jataí, além de ser Diretor do Instituto de Inovação. Paralelamente, atua como pesquisador do Think Tank da ABES e do Laboratório da Gestão da Inovação da Escola Política.

O uso estratégico das políticas de demanda na construção de capacidades tecnológicas nacionais.

Nas últimas décadas, o debate sobre políticas de inovação tem se concentrado em dois grandes enfoques: as políticas pelo lado da oferta (supply-side) e as políticas pelo lado da demanda (demand-side). Embora complementares, esses dois modelos partem de lógicas distintas de intervenção pública e de indução ao desenvolvimento tecnológico.

As políticas de inovação pelo lado da oferta baseiam-se em instrumentos clássicos de fomento, como linhas de crédito, subvenções econômicas, incentivos fiscais à P&D, incubadoras e parques tecnológicos. Seu foco principal é ampliar os dispêndios em pesquisa e desenvolvimento, fortalecendo a capacidade produtiva interna e o capital científico-tecnológico nacional. São políticas de “empurrão” (supply push), nas quais o Estado atua como financiador direto de atividades de pesquisa ou como provedor de infraestrutura, mesmo antes de existir uma demanda clara do mercado. Essa lógica foi predominante em boa parte das economias em desenvolvimento, incluindo o Brasil, e teve papel fundamental na formação de competências técnicas e científicas. No entanto, isoladamente, mostrou-se insuficiente para transformar conhecimento em valor econômico e social.

É nesse ponto que ganham relevância as políticas de inovação pelo lado da demanda, cuja essência é criar ou direcionar mercados para soluções inovadoras tendo como o Estado seu principal financiador e cliente. Em vez de apenas financiar a oferta de conhecimento, o Estado utiliza seu poder de compra e de regulação para estimular a inovação como resposta a necessidades concretas, seja do próprio governo ou da sociedade. Entre os instrumentos disponíveis estão as compras públicas para inovação, as exigências de conteúdo local associadas a requisitos de Pesquisa e Desenvolvimento (P&D), a regulação setorial, a normalização e mecanismos experimentais, como encomendas tecnológicas e sandbox regulatórios. Essas políticas funcionam como um “puxão” (demand pull), ao especificar desafios reais e induzir o mercado a desenvolver respostas tecnológicas adequadas.

O caso da Encomenda Tecnológica (ETEC) conduzida pela Agência Espacial Brasileira (AEB) para o desenvolvimento do Sistema de Navegação Inercial/GNSS (SNI) é emblemático. Trata-se de um instrumento legal previsto no Marco Legal de Ciência, Tecnologia e Inovação (Lei nº 13.243/2016), voltado à contratação de soluções tecnológicas ainda inexistentes no mercado. Diferentemente das compras convencionais, o pagamento está condicionado ao esforço de desenvolvimento e não ao produto final, permitindo assumir maior risco tecnológico, algo essencial em setores estratégicos como o espacial e o de defesa.

A encomenda da AEB mobilizou empresas nacionais — Concert Space, Cron e Horuseye Tech — em torno de um desafio crítico: desenvolver um sistema capaz de fornecer informações de trajetória e correção de rota para veículos lançadores. O projeto não apenas criou uma tecnologia inédita, mas também fortaleceu o ecossistema de inovação nacional, gerando efeitos como a formação de capacidades técnicas, a retenção de talentos intensivos em conhecimento, o estabelecimento de novas parcerias empresariais e a expansão de oportunidades para outros setores. Mais do que um produto tecnológico, tratou-se de um investimento estratégico na autonomia nacional e na criação de valor público a partir da inovação.

Contudo, a adoção de políticas de demanda ainda enfrenta barreiras estruturais no Brasil: fragmentação institucional, baixa coordenação entre políticas de oferta e demanda, carência de dados e avaliações sistemáticas, e forte aversão ao risco no setor público. Além disso, a dependência tecnológica externa e a instabilidade de financiamento, especialmente do Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT), limitam a continuidade de projetos complexos e estratégicos.

Para superar esses desafios, é necessário articular políticas de demanda e de oferta de modo sistêmico. Isso implica expandir e profissionalizar o uso das compras públicas de inovação, criar mecanismos robustos de monitoramento e avaliação, e integrar diferentes instrumentos de política em torno de objetivos nacionais de transformação tecnológica.

Em um contexto global de transição digital, energética e produtiva, o Brasil tem diante de si uma oportunidade decisiva: equilibrar o uso de modelos de apoio à oferta com instrumentos de indução pela demanda, capaz de alinhar inovação, desenvolvimento produtivo e bem-estar social. A experiência da AEB demonstra que a demanda pública qualificada pode ser o motor da inovação nacional, transformando desafios complexos em oportunidades de aprendizado, autonomia e desenvolvimento sustentável.

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