Entre o previsível e o possível: repensando o planejamento urbano a partir dos futuros
O termo “planejamento urbano” parece carregar uma contradição de origem. Planejar vem de uma ideia de controle e previsibilidade, enquanto cidade, por definição, é organismo vivo, indisciplinado e incerto. Mais ainda: planejar, no uso institucional e técnico que fazemos hoje, carrega uma carga pesada do passado. Planeja-se para prevenir, corrigir, remediar. Planeja-se com base em modelos, diagnósticos e estatísticas. Mas raramente se planeja a partir de futuros.
O próprio termo ‘planejamento’ carrega em si uma armadilha conceitual. Derivado do latim ‘planus’, plano, nivelado, liso, planejar é, em sua origem, o ato de tornar algo plano, regular, previsível. É achatar, estandardizar. Aplicado às cidades, esse conceito herda o imaginário moderno de controle e racionalização do “território”. Planejar passa a ser sinônimo de ordenar, antecipar, estabilizar. No entanto, cidades não são homogêneas: são sistemas dinâmicos, contraditórios, conflituosos, indisciplinados. Ao tentar torná-las previsíveis, o planejamento frequentemente reduz sua potência emergente e ignora sua natureza rizomática (Deleuze & Guattari). Planejar, nesse sentido, acaba sendo mais um ato de contenção do que de criação. O futuro, afinal, não é algo a ser nivelado, mas a ser tensionado, imaginado, pluralizado, explorado.
Tem alguma coisa muito errada nisso. Seguimos usando o termo “planejamento urbano” como se o futuro fosse um destino a ser previsto e não múltiplas possibilidades a serem exploradas. Como se a cidade fosse estática, e não mutante, como se pudéssemos realmente prever o caminho de um lugar com base apenas no que ele já foi ou é.
Mais do que uma crítica semântica, trata-se de uma crítica epistemológica. O conceito de planejamento urbano como conhecemos deriva de uma lógica moderna de ordenamento, enraizada na crença de que o desenvolvimento é linear, progressivo e previsível. Mas o tempo das cidades não se encaixa nessa moldura. Vivemos tempos simultâneos, desiguais, acelerados e complexos. O tempo urbano é o tempo de Sasa e Zamani (Mbiti), de Kairos, e não apenas de Kronos (Barbour; Rovelli). Exige leituras que não apenas meçam o tempo, mas que compreendam seus ritmos, seus sentidos e suas intensidades (Lefebvre, Rosa).
Diante disso, o que proponho é um deslocamento de paradigma: do planejamento urbano para uma abordagem de futuros urbanos. Não se trata de trocar uma palavra por outra, mas de abrir o campo conceitual e prático da atuação sobre as cidades. Enquanto o planejamento busca controle, a abordagem de futuros reconhece a incerteza como elemento central de projeto. Enquanto o planejamento parte de dados pretéritos, a abordagem de futuros trabalha com sinais (fortes e fracos), tendências emergentes, cenários possíveis e imaginação estratégica (Voros).
Falar de futuros urbanos é incorporar o que chamo em meu último livro de Place Strategic Foresight©: a aplicação da exploração de futuros a cidades e lugares. Isso envolve métodos específicos, como mapeamento de drivers, análise de tendências, construção de cenários, backcasting, mas, principalmente, exige uma mudança de mentalidade. Cidades não devem ser moldadas apenas por projeções lineares, mas por visões desejadas e pluralidade de possibilidades. Isso não invalida os instrumentos tradicionais, mas os reposiciona como ferramentas dentro de uma estratégia mais ampla.
Ao adotar os futuros como lente, conseguimos superar o “planejamento para o presente”. Conseguimos escapar da futurofobia, o medo da incerteza, que nos paralisa, e evitar o delírio da futurotopia, a crença cega em um futuro redentor e homogêneo. Passamos a operar a partir do reconhecimento de que há futuros desejáveis, prováveis e possíveis, e também os indesejáveis. Cabe a nós, enquanto agentes urbanos, tensionar essa balança sempre para o lado da transformação e impacto positivos.
Cidades à prova de futuro não são aquelas que adivinham o que vem pela frente, mas aquelas que são capazes de responder, adaptar e transformar-se diante do que ainda não se manifestou. São cidades que combinam antifragilidade (Taleb), imaginação radical e governança distribuída. São lugares que cultivam singularidades e que se preparam não apenas para resistir às crises, mas para emergir melhores delas.
O futuro exige mais do que planejamento. Exige imaginação. Lugares não são apenas recortes espaciais no tempo presente, são também campos vivos de futuros possíveis. É hora de redesenhar a forma como pensamos a cidade, não como quem busca certezas, mas como quem se dispõe a explorar as incertezas e cultivar futuros.
As ideias e opiniões expressas no artigo são de exclusiva responsabilidade do autor, não refletindo, necessariamente, as opiniões do Connected Smart Cities.

Fundador da N/Lugares Futuros. Especialista em place branding, placemaking e futuro das cidades. Autor, professor e keynote speaker, presente nas principais redes e institutos internacionais que discutem e promovem lugares e futuros.