Entre o controle e a cidadania: como o uso responsável da tecnologia pode redefinir a segurança pública nas cidades brasileiras
Participei recentemente do Connected Smart Cities & Mobility 25, em uma mesa dedicada a uma reflexão sobre o papel das tecnologias no desenvolvimento de cidades inteligentes, onde eu tive a oportunidade de dialogar sobre seus usos na área de segurança pública. A experiência evidenciou um contraste marcante entre as perspectivas do setor privado e governamental em comparação àquelas que comumente circulam no ambiente universitário.
É fácil imaginar a reação crítica de muitos colegas acadêmicos diante de algumas soluções tecnológicas apresentadas como respostas aos desafios da segurança urbana — por exemplo, a ideia de proteger áreas habitadas a partir de uma lógica de delimitação e restrição, tentando conter riscos de fora para dentro. O discurso de “proteção” não poderia ocultar a intensificação da vigilância e da repressão? Não poderia criar zonas de controle social cercadas por tecnologias de monitoramento? Não poderia reduzir a política pública à gestão de riscos calculados, em que indicadores substituem direitos e a população se torna um conjunto de variáveis a serem administradas? Ainda que tais questões mereçam atenção, o objetivo deste texto não é enfatizar as divergências, mas sim destacar os pontos de convergência que emergem desse encontro entre diferentes olhares.
No decorrer do evento, dialoguei com diferentes especialistas, entre eles o Secretário Municipal de Ordem Pública de Niterói (Rio de Janeiro), Gilson Chagas e Silva Filho. A experiência da cidade, sintetizada no programa “Niterói Conectado”, ilustra como a combinação entre planejamento estratégico, investimento em tecnologias e integração de políticas públicas pode destacar um município no cenário nacional.
Esse conjunto de ações transformou Niterói em referência em segurança pública e inovação urbana, reconhecimento consolidado com a conquista do 1º lugar no Prêmio Connected 2025. A iniciativa alia gestão tecnológica à participação social, envolvendo especialistas e moradores na definição de metas até 2030. Os resultados são expressivos: redução consistente de homicídios e crimes patrimoniais.
O programa serve muito bem como exemplo de política pública municipal bem-sucedida, o que nos leva a algumas ponderações. A atenção parte do reconhecimento de que passado, presente e futuro estão intrinsecamente conectados e devem ser considerados de forma integrada em qualquer análise.
No campo da segurança pública, o presente configura um momento singular: nunca houve tantas ferramentas tecnológicas disponíveis, tamanha quantidade de dados gerados e, consequentemente, tanto potencial para compreender, avaliar e intervir sobre as dinâmicas criminais.
Esse cenário inaugura não apenas novas possibilidades de ação, mas também desafios éticos e políticos relacionados ao uso de informações sensíveis, à governança das tecnologias e ao equilíbrio entre eficiência operacional e respeito aos direitos fundamentais.
Para compreender esse presente, no entanto, é preciso olhar para os obstáculos históricos que marcaram o uso de tecnologias na segurança pública no Brasil. O passado mostra que a adoção de inovações enfrentou inúmeros entraves, como cultura burocrática arraigada, a resistência institucional às mudanças e a falta de infraestrutura adequada, que dificultavam a integração de dados e a modernização dos serviços.
A centralização das decisões, a pressão por metas numéricas e a rigidez dos procedimentos limitaram a autonomia operacional, enquanto a fragmentação de registros, a desorganização (até mesmo o desaparecimento) de arquivos e a subutilização dos sistemas informatizados comprometeram a eficácia das inovações. Além disso, a tradição autoritária e repressiva do regime militar, adiaram a adoção de práticas mais democráticas e preventivas – e adiam ainda hoje. Esses entraves, somados ao treinamento insuficiente e à eficiência irregular das novas tecnologias, resultaram em implementações parciais e desiguais.
Pensando no futuro mais próximo, destacam-se conflitos de escala e repercussão global, como a guerra na Ucrânia, o confronto em Gaza, a tensão entre Índia e Paquistão, além da guerra civil no Sudão e do avanço de grupos armados no leste da República Democrática do Congo. Esses cenários internacionais não estão desconectados da realidade brasileira: ao contrário, influenciam diretamente o ambiente de segurança no país.
A difusão de tecnologias e capacidades militares, intensificada pela circulação global de armas e pela facilidade de acesso a componentes de uso dual (com aplicações civis e militares), amplia a possibilidade de que grupos criminosos no Brasil tenham acesso a armamentos cada vez mais sofisticados. Devemos considerar a chegada de fuzis de alto calibre, miras eletrônicas, sistemas de comunicação criptografada e até drones armados ou adaptados para transporte de cargas ilícitas ou vigilância de territórios.
A crescente disponibilidade desses recursos aumenta o poder de fogo e a capacidade estratégica de facções criminosas, que passam a rivalizar não apenas entre si, mas também com o próprio Estado em determinadas regiões, colocando em risco a segurança pública e exigindo novas formas de regulação tecnológica. Mesmo que um município seja bem-sucedido em enfrentar essa realidade, outro pode não ter o mesmo sucesso, o que acaba por afetá-lo direta e/ou indiretamente.
Superar os obstáculos históricos no uso de tecnologia pela segurança pública exige mais do que investimentos em infraestrutura; requer mudanças culturais e institucionais profundas. Hoje, é fundamental promover uma governança baseada em transparência, regulação adequada e princípios de inteligência artificial responsável, garantindo que os algoritmos sejam auditáveis e livres de vieses.
A superação passa também pela integração de dados de fontes distintas, pelo fortalecimento da cooperação entre diferentes esferas de governo e pelo incentivo a parcerias equilibradas com o setor privado, sem comprometer o caráter público da segurança. Para o futuro, é necessário adotar uma estratégia integrada que combine fortalecimento do controle de fronteiras, aperfeiçoamento da legislação e da fiscalização e investimento tanto em inovação quanto em pesquisa e difusão.
Além disso, é fundamental ampliar a cooperação entre forças de segurança, instituições de defesa e órgãos de investigação financeira, de modo a enfraquecer as cadeias logísticas do tráfico de armas, ao mesmo tempo em que se promove uma agenda de prevenção social voltada à redução da demanda por esses arsenais nas dinâmicas criminais urbanas. Também é necessário investir na capacitação contínua de policiais, ampliar a participação social e fomentar uma cultura de alfabetização digital, permitindo que tanto agentes quanto cidadãos compreendam, questionem e legitimem o uso das tecnologias: Pessoas são fundamentais neste processo!
O desafio que se coloca diante das cidades brasileiras é, portanto, articular técnica, ética e compromisso democrático. A experiência de Niterói demonstra que é possível alinhar gestão pública eficiente, integração de políticas sociais e uso estratégico de tecnologias. Contudo, a sua repetição, mesmo em municípios com demografia e criminalidade semelhantes, não é garantia de sucesso. Mais do que replicar modelos ou erguer barreiras, trata-se de pensar cidades verdadeiramente conectadas, capazes de integrar territórios e cidadãos em torno de soluções compartilhadas e inclusivas. O futuro da segurança urbana dependerá da capacidade de superar entraves históricos, enfrentar riscos globais e, sobretudo, garantir que desde hoje a inovação seja guiada por demandas em múltiplas escalas — do regional ao local — e participação cidadã. Somente com esse conjunto de ações será possível alinhar avanços tecnológicos e direitos humanos, garantindo eficiência sem abrir mão da justiça social.
As ideias e opiniões expressas no artigo são de exclusiva responsabilidade do autor, não refletindo, necessariamente, as opiniões do Connected Smart Cities.

Profissional com mais de 15 anos de experiência em coordenação de projetos, análises quali-quantitativas, desenvolvimento de pesquisas e disseminação de conhecimentos. Sociólogo (USP) e Tecnólogo (INPE). Coordenador de Transferência de Tecnologia e “Head” do Centro Colaborador da PAHO/OMS (BRA-61) no Núcleo de Estudos da Violência (NEV) da USP – CEPID-FAPESP. Pesquisador no Programa de Fellowship da ABES, atuando no Think Tank “Centro de Inteligência, Políticas Públicas e Inovação” em parceria com o Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP.