spot_img
HomeEIXOS TEMÁTICOSSegurançaCidades Conectadas e Cidadãos Seguros: Lições do Passado, Desafios do Presente e...

Cidades Conectadas e Cidadãos Seguros: Lições do Passado, Desafios do Presente e Possibilidades Futuras

Marcelo Nery
Marcelo Nery
Profissional com mais de 15 anos de experiência em coordenação de projetos, análises quali-quantitativas, desenvolvimento de pesquisas e disseminação de conhecimentos. Sociólogo (USP) e Tecnólogo (INPE). Coordenador de Transferência de Tecnologia e "Head" do Centro Colaborador da PAHO/OMS (BRA-61) no Núcleo de Estudos da Violência (NEV) da USP - CEPID-FAPESP. Pesquisador no Programa de Fellowship da ABES, atuando no Think Tank "Centro de Inteligência, Políticas Públicas e Inovação" em parceria com o Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP.

Entre o controle e a cidadania: como o uso responsável da tecnologia pode redefinir a segurança pública nas cidades brasileiras

Participei recentemente do Connected Smart Cities & Mobility 25, em uma mesa dedicada a uma reflexão sobre o papel das tecnologias no desenvolvimento de cidades inteligentes, onde eu tive a oportunidade de dialogar sobre seus usos na área de segurança pública. A experiência evidenciou um contraste marcante entre as perspectivas do setor privado e governamental em comparação àquelas que comumente circulam no ambiente universitário.

É fácil imaginar a reação crítica de muitos colegas acadêmicos diante de algumas soluções tecnológicas apresentadas como respostas aos desafios da segurança urbana — por exemplo, a ideia de proteger áreas habitadas a partir de uma lógica de delimitação e restrição, tentando conter riscos de fora para dentro. O discurso de “proteção” não poderia ocultar a intensificação da vigilância e da repressão? Não poderia criar zonas de controle social cercadas por tecnologias de monitoramento? Não poderia reduzir a política pública à gestão de riscos calculados, em que indicadores substituem direitos e a população se torna um conjunto de variáveis a serem administradas? Ainda que tais questões mereçam atenção, o objetivo deste texto não é enfatizar as divergências, mas sim destacar os pontos de convergência que emergem desse encontro entre diferentes olhares.

No decorrer do evento, dialoguei com diferentes especialistas, entre eles o Secretário Municipal de Ordem Pública de Niterói (Rio de Janeiro), Gilson Chagas e Silva Filho. A experiência da cidade, sintetizada no programa “Niterói Conectado”, ilustra como a combinação entre planejamento estratégico, investimento em tecnologias e integração de políticas públicas pode destacar um município no cenário nacional.

Esse conjunto de ações transformou Niterói em referência em segurança pública e inovação urbana, reconhecimento consolidado com a conquista do 1º lugar no Prêmio Connected 2025. A iniciativa alia gestão tecnológica à participação social, envolvendo especialistas e moradores na definição de metas até 2030. Os resultados são expressivos: redução consistente de homicídios e crimes patrimoniais.

O programa serve muito bem como exemplo de política pública municipal bem-sucedida, o que nos leva a algumas ponderações. A atenção parte do reconhecimento de que passado, presente e futuro estão intrinsecamente conectados e devem ser considerados de forma integrada em qualquer análise.

No campo da segurança pública, o presente configura um momento singular: nunca houve tantas ferramentas tecnológicas disponíveis, tamanha quantidade de dados gerados e, consequentemente, tanto potencial para compreender, avaliar e intervir sobre as dinâmicas criminais.

Esse cenário inaugura não apenas novas possibilidades de ação, mas também desafios éticos e políticos relacionados ao uso de informações sensíveis, à governança das tecnologias e ao equilíbrio entre eficiência operacional e respeito aos direitos fundamentais.

Para compreender esse presente, no entanto, é preciso olhar para os obstáculos históricos que marcaram o uso de tecnologias na segurança pública no Brasil. O passado mostra que a adoção de inovações enfrentou inúmeros entraves, como cultura burocrática arraigada, a resistência institucional às mudanças e a falta de infraestrutura adequada, que dificultavam a integração de dados e a modernização dos serviços.

A centralização das decisões, a pressão por metas numéricas e a rigidez dos procedimentos limitaram a autonomia operacional, enquanto a fragmentação de registros, a desorganização (até mesmo o desaparecimento) de arquivos e a subutilização dos sistemas informatizados comprometeram a eficácia das inovações. Além disso, a tradição autoritária e repressiva do regime militar, adiaram a adoção de práticas mais democráticas e preventivas – e adiam ainda hoje. Esses entraves, somados ao treinamento insuficiente e à eficiência irregular das novas tecnologias, resultaram em implementações parciais e desiguais.

Pensando no futuro mais próximo, destacam-se conflitos de escala e repercussão global, como a guerra na Ucrânia, o confronto em Gaza, a tensão entre Índia e Paquistão, além da guerra civil no Sudão e do avanço de grupos armados no leste da República Democrática do Congo. Esses cenários internacionais não estão desconectados da realidade brasileira: ao contrário, influenciam diretamente o ambiente de segurança no país.

A difusão de tecnologias e capacidades militares, intensificada pela circulação global de armas e pela facilidade de acesso a componentes de uso dual (com aplicações civis e militares), amplia a possibilidade de que grupos criminosos no Brasil tenham acesso a armamentos cada vez mais sofisticados. Devemos considerar a chegada de fuzis de alto calibre, miras eletrônicas, sistemas de comunicação criptografada e até drones armados ou adaptados para transporte de cargas ilícitas ou vigilância de territórios.

A crescente disponibilidade desses recursos aumenta o poder de fogo e a capacidade estratégica de facções criminosas, que passam a rivalizar não apenas entre si, mas também com o próprio Estado em determinadas regiões, colocando em risco a segurança pública e exigindo novas formas de regulação tecnológica. Mesmo que um município seja bem-sucedido em enfrentar essa realidade, outro pode não ter o mesmo sucesso, o que acaba por afetá-lo direta e/ou indiretamente.

Superar os obstáculos históricos no uso de tecnologia pela segurança pública exige mais do que investimentos em infraestrutura; requer mudanças culturais e institucionais profundas. Hoje, é fundamental promover uma governança baseada em transparência, regulação adequada e princípios de inteligência artificial responsável, garantindo que os algoritmos sejam auditáveis e livres de vieses.

A superação passa também pela integração de dados de fontes distintas, pelo fortalecimento da cooperação entre diferentes esferas de governo e pelo incentivo a parcerias equilibradas com o setor privado, sem comprometer o caráter público da segurança. Para o futuro, é necessário adotar uma estratégia integrada que combine fortalecimento do controle de fronteiras, aperfeiçoamento da legislação e da fiscalização e investimento tanto em inovação quanto em pesquisa e difusão.

Além disso, é fundamental ampliar a cooperação entre forças de segurança, instituições de defesa e órgãos de investigação financeira, de modo a enfraquecer as cadeias logísticas do tráfico de armas, ao mesmo tempo em que se promove uma agenda de prevenção social voltada à redução da demanda por esses arsenais nas dinâmicas criminais urbanas. Também é necessário investir na capacitação contínua de policiais, ampliar a participação social e fomentar uma cultura de alfabetização digital, permitindo que tanto agentes quanto cidadãos compreendam, questionem e legitimem o uso das tecnologias: Pessoas são fundamentais neste processo!

O desafio que se coloca diante das cidades brasileiras é, portanto, articular técnica, ética e compromisso democrático. A experiência de Niterói demonstra que é possível alinhar gestão pública eficiente, integração de políticas sociais e uso estratégico de tecnologias. Contudo, a sua repetição, mesmo em municípios com demografia e criminalidade semelhantes, não é garantia de sucesso. Mais do que replicar modelos ou erguer barreiras, trata-se de pensar cidades verdadeiramente conectadas, capazes de integrar territórios e cidadãos em torno de soluções compartilhadas e inclusivas. O futuro da segurança urbana dependerá da capacidade de superar entraves históricos, enfrentar riscos globais e, sobretudo, garantir que desde hoje a inovação seja guiada por demandas em múltiplas escalas — do regional ao local — e participação cidadã. Somente com esse conjunto de ações será possível alinhar avanços tecnológicos e direitos humanos, garantindo eficiência sem abrir mão da justiça social.

As ideias e opiniões expressas no artigo são de exclusiva responsabilidade do autor, não refletindo, necessariamente, as opiniões do Connected Smart Cities

Artigos relacionados
- Advertisment -spot_img
- Advertisment -spot_img

Mais vistos

Marcelo Nery
Marcelo Nery
Profissional com mais de 15 anos de experiência em coordenação de projetos, análises quali-quantitativas, desenvolvimento de pesquisas e disseminação de conhecimentos. Sociólogo (USP) e Tecnólogo (INPE). Coordenador de Transferência de Tecnologia e "Head" do Centro Colaborador da PAHO/OMS (BRA-61) no Núcleo de Estudos da Violência (NEV) da USP - CEPID-FAPESP. Pesquisador no Programa de Fellowship da ABES, atuando no Think Tank "Centro de Inteligência, Políticas Públicas e Inovação" em parceria com o Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP.
- Advertisment -spot_img
- Advertisment -spot_img

Mais vistos