A transformação digital no setor público representa uma mudança paradigmática na forma como o Estado se relaciona com a sociedade, gerencia seus recursos e entrega serviços, não se limitando à adoção de tecnologias, mas envolve uma reestruturação profunda dos processos administrativos, da cultura organizacional e da governança pública. A digitalização das compras públicas, por exemplo, permite a automação de processos, a rastreabilidade das contratações e a ampliação da competitividade, ao mesmo tempo em que reduz custos e riscos de corrupção. A transformação digital, portanto, é nesse momento uma estratégia essencial para a construção de um Estado mais inteligente, inclusivo e resiliente. A nova Lei de Licitações (Lei 14.133/2021) se constitui como marco regulatório que impulsiona essa modernização, exigindo maior transparência, eficiência e controle.
As GovTechs, que são como startups voltadas à inovação no setor público, têm desempenhado papel fundamental na aceleração da transformação digital governamental, provendo soluções tecnológicas escaláveis que atendem às necessidades específicas da administração pública (plataformas de e-procurement, sistemas de gestão documental, ferramentas de análise de dados e interfaces de atendimento ao cidadão, entre outras possibilidades). A expansão desse “ecossistema GovTech” no Brasil é uma oportunidade para fortalecer a capacidade estatal de inovar, promover a interoperabilidade entre sistemas e ampliar a transparência e a accountability, uma parceria que tem permitido a experimentação na Administração Pública de novas abordagens, a redução do tempo de implementação de projetos e a melhoria da experiência do usuário. Além disso, os laboratórios de inovação e os hubs de tecnologia transformam-se aos poucos em espaços estratégicos para a cocriação de soluções, envolvendo servidores públicos, cidadãos e empreendedores.
Um outro aspecto, o da aplicação de Inteligência Artificial (IA) e Blockchain no setor público tem potencial transformador. A IA generativa, por exemplo, pode ser utilizada para análise preditiva, automação de tarefas repetitivas, atendimento virtual e detecção de padrões em grandes volumes de dados – apoiando auditorias digitais, identificar fraudes e otimizar a alocação de recursos. Já o Blockchain oferece segurança, rastreabilidade e integridade às transações públicas, sendo especialmente útil em processos de compras e contratos, garantindo que os registros públicos sejam imutáveis e acessíveis. (ressaltando que essa tecnologia deve ser incorporada com responsabilidade, respeitando princípios éticos, legais e de proteção de dados). A integração dessas ferramentas, entretanto, exige capacitação dos servidores, revisão de marcos regulatórios e investimentos em infraestrutura digital.
No que diz respeito à interoperabilidade entre sistemas governamentais – um dos pilares da transformação digital, verifica-se que ela permite que diferentes órgãos e entidades compartilhem dados e informações de forma segura, eficiente e integrada. A construção de uma arquitetura digital interoperável requer padrões técnicos comuns, infraestrutura robusta e governança colaborativa (enquanto sua ausência, por outro lado, contribui para gerar redundâncias, ineficiências e dificuldades na prestação de serviços ao cidadão. Além disso, a interoperabilidade é essencial para a implementação de políticas públicas baseadas em evidências, pois permite o cruzamento de dados entre áreas como saúde, educação, segurança e assistência social. A Rede GOV.BR é um exemplo prático de iniciativa que busca integrar serviços públicos em uma plataforma única, facilitando o acesso e a gestão por parte dos usuários.
Tive a oportunidade como pesquisador de desenvolver o Framework TECHNE + LEGIS, apresentado pela primeira vez num evento institucional da ABES, pensado como um modelo para orientar a transformação digital no setor público, reconhecendo que a inovação pública depende tanto da tecnologia quanto da regulação e da cultura organizacional.
Figura 1: Framework TECHNE + LEGIS © acessível em https://youtu.be/5SjMf-wc67w
O eixo TECHNE refere-se à identificação, experimentação e validação de soluções tecnológicas, em parceria com GovTechs, universidades e laboratórios de inovação, promovendo a agilidade. Já o eixo LEGIS envolve a articulação institucional para atualização normativa, capacitação de servidores e formulação de políticas públicas digitais, ou seja, o LEGIS assegura a legitimidade e a sustentabilidade das mudanças. O TECHNE + LEGIS © é uma proposta estratégica simples e possível, com uma proposta de transformar o Estado numa plataforma de serviços inteligentes e inclusivos. A aplicação desse framework permite que governos avancem o conceito de gestão integrada do conhecimento, focada na digitalização de processos, na melhoria da experiência do usuário e na ampliação da transparência – um modelo simplificado e que favorece a construção de uma governança digital colaborativa, envolvendo múltiplos atores e promovendo a inovação aberta.
Mais do que simplesmente “adotar tecnologias”, é necessário repensar modelos de gestão, estruturas organizacionais e formas de interação com a sociedade, e são vários os estudos e pesquisas que evidenciam que essa transformação através de visão estratégica, liderança, capacitação e articulação institucional para a construção de um “Estado Brasileiro Exponencial”. Cabe agora aos nossos gestores públicos, pesquisadores e sociedade civil atuar de forma colaborativa para que essa transformação seja efetiva, ética e centrada no bem comum.
A transformação digital no setor público é um processo complexo, multidimensional e contínuo. Uma oportunidade fantástica para fortalecer a nossa democracia, ampliar a participação cidadã, e promover o desenvolvimento sustentável.
Referências Bibliográficas BRASIL. Lei nº 14.133, de 1º de abril de 2021. Institui a nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 1 abr. 2021. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2021/Lei/L14133.htm . Acesso em: 14 ago. 2024. ESTEVES, José Luiz. A Transformação Digital e seus Impactos sobre as Compras Públicas. In: ABES Think Tank. São Paulo: ABES, 2024. Disponível em: https://abes.com.br/a-transformacao-digital-e-seus-impactos-sobre-as-compras-publicas/ . Acesso em: 14 ago. 2024. ESTEVES, José Luiz. A Dimensão do ESG e seus impactos na gestão e governança pública. In: ABES Think Tank. São Paulo: ABES, 2024. Disponível em: https://thinktankabes.org.br/publicacoes/a-dimensao-do-esg-e-seus-impactos-na-gestao-e-governanca-publica/ . Acesso em: 14 ago. 2024. WORLD BANK. GovTech Maturity Index 2022: Achievements and Opportunities. Washington, DC: World Bank, 2022. Disponível em: https://www.worldbank.org/en/programs/govtech/gtmi . Acesso em: 14 ago. 2024. OECD. Digital Government Review of Brazil: Towards the Digital Transformation of the Public Sector. Paris: OECD Publishing, 2018. Disponível em: https://www.oecd.org/en/publications/digital-government-review-of-brazil_9789264307636-en.html . Acesso em: 14 ago. 2024. SCHWAB, Klaus. A Quarta Revolução Industrial. São Paulo: Edipro, 2016. Disponível em: https://edipro.com.br/livro/a-quarta-revolucao-industrial/ . Acesso em: 14 ago. 2024.

Prof. Dr. José Luiz Esteves, DBA.