Nos acostumamos a associar o futuro das cidades a sensores, dados e dashboards. Mas raramente falamos do tempo. E é essa ausência que revela um dos maiores paradoxos urbanos: a dificuldade em lidar com o tempo de maneira plural, estratégica e não linear.
Vivemos o que François Hartog chamou de “presentismo”: um presente hipertrofiado que ofusca os outros tempos. Mesmo assim, ignoramos que múltiplos tempos convivem na cidade. O do mercado, rápido e competitivo. O da gestão pública, burocrático e cíclico. O dos dados, incessante. O das pessoas, sensível e fluido. E o do planeta, profundo, lento e indiferente à nossa urgência.
Cidade como palimpsesto temporal
A cidade, afinal, não é só espaço, é também tempo, da mesma forma que tudo dentro e fora dela, como Einsten concluiu na sua teoria mais famosa. Ela acumula camadas históricas, como um palimpsesto: tempos exaltados, silenciados ou reinventados. Mais do que isso, ela molda a forma como vivemos o tempo: pode acelerá-lo, interrompê-lo ou permitir que ele aconteça de forma plena e significativa. Uma cidade inteligente, portanto, não é aquela que só otimiza fluxos, mas a que reconhece e equilibra os diversos ritmos que compõem a vida urbana.
Na Grécia antiga, havia três formas de se relacionar com o tempo: Kronós, o tempo mensurável; Kairós, o tempo oportuno; e Aiôn, o tempo da duração e da memória. Cidades saudáveis equilibram essas três dimensões, todas as outras vivem sob a tirania de Kronós, onde tudo vira métrica e urgência.
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Ciência e a fragmentação do tempo
A ciência, por sua vez, desmontou a ideia de tempo único. Se Einstein mostrou que tempo e espaço são relativos, Carlo Rovelli afirma que o tempo é sempre local, relativo e fragmentado. E a física quântica vai além: o tempo pode ser emergente, descontínuo ou mesmo ilusório. Como diz Julian Barbour, talvez o tempo nem exista no nível mais fundamental da realidade. O futuro, nesse contexto, não é linha, é probabilidade, bifurcação, multiplicidade.
Também nas ciências humanas o tempo é plural. Walter Benjamin fala de instantes carregados de potência, e Michel-Rolph Trouillot mostra como até o passado é disputado, assim como o futuro. Planejar a cidade ignorando esses entrelaçamentos temporais, e por consequência, espaço-temporais, é restringir possibilidades e repetir os erros do presente.
Uma cidade à prova de futuro
A abordagem que defendo propõe uma cidade à prova de futuro: uma fusão entre identidade (place branding), experiência (placemaking) e futurismo estratégico. Um ecossistema de métodos que vão de análise de sinais a exploração coletiva de cenários, não para prever, mas para preparar lugares para futuros possíveis, plurais e compartilhados.
O tempo da cidade é o ritmo da vida. Há cidades aceleradas demais, outras paralisadas. Mas talvez a verdadeira inteligência urbana seja a capacidade de escutar seus próprios tempos, os da memória, da imaginação, dos afetos e da transformação. É nesse sentido que o conceito japonês de ma pode nos inspirar: um tempo-espaço de suspensão, vazio criativo e preparação simbólica, um estado latente de possibilidades, o hoje entre o que fomos e o que podemos nos tornar.
Conclusão
Concluo essa minha primeira coluna com algumas perguntas, ao mesmo tempo óbvias e incômodas.
- Que futuros queremos para nossas cidades?
- Quais passados precisam ser lembrados ou reparados?
- Como podemos juntos construir lugares à prova de tempo?
Ser à prova de futuro não é resistir ao tempo. É cultivar uma relação viva com ele.
As ideias e opiniões expressas no artigo são de exclusiva responsabilidade do autor, não refletindo, necessariamente, as opiniões do Connected Smart Cities.

Fundador da N/Lugares Futuros. Especialista em place branding, placemaking e futuro das cidades. Autor, professor e keynote speaker, presente nas principais redes e institutos internacionais que discutem e promovem lugares e futuros.