Soluções como inteligência artificial, robotáxis, veículos elétricos e mobilidade como serviço (MaaS) apontam caminhos para um transporte mais eficiente e sustentável
Noel Rosa já cantou que o bonde parecia uma carroça: “coisa nossa, muito nossa”, atestou o bamba, em 1932. Meio século depois, a escola de samba Em Cima da Hora viajaria pelos trilhos do subúrbio carioca com o trabalhador que, de “peito amargurado”, batucava na marmita para esquecer a tristeza quando o trem quebrava. Na década seguinte, Gabriel o Pensador alertou: “É um assalto, malandro!” E se choveu, pronto, “tudo alagado”. Era a rotina, convertida em rap, de quem sacolejava nos ônibus da antiga linha 175 (Barra da Tijuca-Central).
O ir e vir de milhões de brasileiros nos transportes costuma inspirar a música popular. As agruras cantadas no passado resistem, como evidencia a vida em metrópoles como Rio de Janeiro e São Paulo. Mas, se os artistas continuarão refletindo esse cotidiano, outros cenários devem aparecer em suas obras.
A mobilidade urbana do futuro já está em construção. Dos veículos autônomos à inteligência artificial (IA) a serviço da gestão do tráfego, tendências ganham as ruas mundo afora. Mudanças climáticas impõem a urgência de soluções mais sustentáveis, como a eletrificação das frotas de ônibus. E o desenvolvimento de novas tecnologias acelera a expectativa de tornar as cidades mais disponíveis a todos.
— Será uma mobilidade descarbonizada, com a extinção gradativa do uso dos combustíveis fósseis, autônoma e conectada, com mais veículos guiados por IA. Vai ser também compartilhada, sob demanda, reduzindo a propriedade de veículos individuais, e altamente planejada e orientada por dados — prevê Glaydston Ribeiro, professor do programa de Engenharia de Transportes da Coppe/UFRJ. — Vejo as cidades interagindo com os veículos, e os veículos interagindo com as cidades, que devem ser mais humanas e equitativas, nas quais o transporte não será só um meio, mas um direito que estrutura o acesso a elas.
No pé no chão da realidade nacional, diz Ribeiro, alcançar esse amanhã não é utopia, porém é preciso agir. Estudos com comparações globais põem em perspectiva os desafios brasileiros. Enquanto os serviços de alta capacidade, como trem e metrô, são recomendados para as áreas mais populosas, um relatório recente da Associação Internacional de Transporte Público (UITP, na sigla em inglês) mostra que, com base em dados de 2022, a Região Metropolitana do Rio tinha quatro quilômetros de linhas de metrô para cada um milhão de habitantes, e a de São Paulo, mais numerosa, cinco. Na mesma proporção, Londres contava com 46 quilômetros, Madri, com 44, e Santiago do Chile, 20.
Impacto na saúde
Outro levantamento sobre transporte público, do aplicativo Moovit, indica que, no ano passado, o Rio registrou o maior tempo médio entre dez capitais do país no deslocamento casa-trabalho: 58 minutos, o oitavo pior resultado entre 50 regiões do mundo.
— No final do dia, olhamos para as pessoas e vemos indignação, cansaço. É sofrimento que impacta na saúde física e mental delas — lamenta Marcus Quintella, diretor da FGV Transportes, centro de estudos que produz o Índice de Qualidade da Mobilidade Urbana. — Em entrevistas em São Paulo, Rio e Belo Horizonte, a população deu notas de zero a 10 aos transportes. Nenhuma das capitais chegou à média ideal. A do Rio foi a pior: 4,6 (contra 4,8 em Belo Horizonte e 5,4 em São Paulo) — afirma ele sobre a edição de abril da pesquisa.
Tarifas pesadas
O diagnóstico, segundo Quintella, passa por integração ineficiente entre os modais e passagens que pesam no bolso. No Rio, onde a tarifa única segue como promessa, um dos desencontros mais recentes envolve a bilhetagem eletrônica. Prefeitura e estado não chegam a um acordo e, a partir do mês que vem, muitos usuários terão que usar dois cartões (Jaé e Riocard) se embarcarem, por exemplo, numa linha de ônibus municipal e, depois, num trem.
— Costumo dizer: de nada adianta uma cidade inteligente, com tecnologia, se não há o básico — lamenta Quintella.
Na contramão do que se preconiza, cresceu no pós-pandemia da Covid-19 o uso do transporte motorizado individual, e mais gente migrou para carros e motos por aplicativo. Mas há luz no fim do túnel, afirmam especialistas: atalhos na busca de soluções.
Alguns foram testados e adotados. Entre eles, a construção de terminais multimodais, como o carioca Gentileza — que integra ônibus, BRTs e VLT — e a instauração de autoridades metropolitanas para articular decisões conjuntas entre cidades, como faz a Grande Vitória. O transporte sobre trilhos se impõe. E seguem na agenda faixas exclusivas para ônibus, BRT e soluções hidroviárias, como as barcas no Rio e o projeto de transporte aquático pelos rios de São Paulo.
Outros caminhos se apoiam nas transformações tecnológicas. Não são os carros voadores que, embora em testes, podem demorar a se tornar viáveis em larga escala. Trata-se de apostas mais factíveis e aplicáveis nos grandes centros urbanos.
Tendências para o futuro de acordo com as propostas dos especialistas
Nesse rumo, Estocolmo, na Suécia, e Helsinque, na Finlândia, estão na vanguarda no modelo de MaaS (mobilidade como serviço), que não tem nada de restrito a contextos como o dos países nórdicos. A Confederação Nacional do Transportes define que o conceito se baseia “na integração entre os modos de transporte disponíveis em um determinado território, sejam eles públicos ou privados, individuais ou coletivos”. Glaydston Ribeiro explica que isso pode ocorrer por meio de uma plataforma digital ou aplicativo para celular em que a pessoa consegue encontrar as informações sobre os trajetos que deseja, planejar seu itinerário da forma mais rápida e confortável, reservar e pagar as tarifas de forma única (por viagem, mensalidade ou até anuidade). Tudo à mão.
Quanto à IA e à internet das coisas (IoT), sensores instalados em veículos, sinais e vias públicas passaram a ser empregados em diversas cidades para otimizar a gestão do tráfego, regular padrões de semáforos, prever congestionamentos e recomendar rotas alternativas, além de identificar as áreas de estacionamento livre. Desde o começo deste ano, o Rio é uma das capitais que testam sua IA, chamada de Cora, no Centro de Operações e Resiliência (COR). O objetivo é estabelecer protocolos para agilizar respostas a engarrafamentos e intempéries.
Planeta afora, essa nova revolução digital permite que veículos autônomos convivam com convencionais, seja no transporte de passageiros, como os “robotáxis” de São Francisco, nos Estados Unidos, ou na entrega de mercadorias, como acontece em Vilnius, capital da Lituânia. É questão de tempo esbarrar com uma dessas novidades na Avenida Paulista, no carioca Túnel Rebouças ou no Eixo Monumental de Brasília.
Mobilidade sustentável
Já o Estudo Nacional de Mobilidade Urbana, do Ministério das Cidades e do BNDES, cita Londres como referência. Na capital inglesa, está em curso uma estratégia de redução da dependência dos carros, ampliação para 80% da proporção de viagens a pé, de bicicleta ou por transporte público coletivo até 2041, redução drástica das mortes no trânsito e promoção de mobilidade sustentável. Uma ações já é famosa: a Zona de Emissão Ultra Baixa (Ulez), onde motoristas de veículos mais poluentes pagam taxa para entrar.
No Brasil, é impositivo levar a mobilidade para o centro do debate sobre a crise climática, diz Nabil Bonduki, professor de Planejamento Urbano da USP e vereador em São Paulo.
— Vêm da mobilidade urbana 60% a 65% dos gases de efeito estufa nas cidades. Uma pessoa em um carro emite aproximadamente 75% mais que um passageiro de ônibus. Por isso, é inevitável a transição do modal individual para o coletivo — diz ele, que aposta na eletrificação da frota como parte das medidas para um futuro sustentável. — Devemos acelerar a eletrificação dos ônibus e dos carros.
Na América Latina, apesar de cerca de três vezes mais caros, ônibus elétricos integram a paisagem de capitais como Santiago (Chile) e Bogotá (Colômbia). No Brasil, se espalham aos poucos. A plataforma E-bus Radar, que monitora a transição, indica que, dos 1.059 ônibus elétricos em circulação no país em abril passado, 789 (74,5%) estavam na cidade de São Paulo. No programa federal Novo PAC foram incluídos investimentos para a compra, nos setores público e privado, de cerca de 2.300 desses veículos. No Rio, a prefeitura promete que, na licitação dos ônibus municipais prevista para ocorrer em etapas até o fim de 2028, a nova frota terá motor Euro 6 (movido a diesel, porém, menos poluente) e, em menor parcela, bateria elétrica.
A eletricidade também move bicicletas, patinetes e motonetas que tomam áreas da Zona Sul do Rio ou a região da Faria Lima, em São Paulo. São recursos da chamada mobilidade ativa ou micromobilidade, que inclui deslocamentos a pé e com bicicletas comuns. Por todos os cantos, o país produz cenas que mostram a adesão das pessoas a esse movimento. As mudanças de comportamento, no entanto, parecem ocorrer mais rapidamente do que a capacidade de adaptação das cidades.
— Há morosidade tanto na criação de infraestrutura para a mobilidade ativa quanto na regulamentação do uso dos veículos elétricos, que podem desenvolver velocidades acima dos 20km/h — diz Clarisse Linke, diretora-executiva do Instituto de Políticas de Transporte e Desenvolvimento (ITDP). —Hoje, pedestres e ciclistas, que já dividem espaço com os carros, também disputam com bicicletas elétricas, motonetas… — completa ela, ao defender que as cidades encarem a redução do espaço para carros.
Ela faz coro com urbanistas que propõem vias dedicadas à mobilidade ativa, a criação de zonas de baixa velocidade na malha viária ou a construção de bicicletários amplos e seguros perto das estações de transporte de média e alta capacidade, para estimular que a micromobilidade seja um alimentador de modais como BRTs, metrô e trens.
— Precisamos ter bacias cicloviárias e de pedestres nos bairros, além de uma ambiência melhor para esses deslocamentos. Mas é necessário também haver integração com o transporte público — ressalta Clarisse.
Alcançada essa conjuntura, os benefícios, mais uma vez, são para os cidadãos e para o planeta. O estudo “Cenário de cidades compactas eletrificadas”, do ITDP, demonstra o impacto da eletrificação da frota e da substituição dos modais pela mobilidade ativa, frente às mudanças climáticas. Nas próximas três décadas, calculam os pesquisadores, a combinação desses dois cenários reduziria as emissões de dióxido de carbono oriundas do transporte em cerca de 87%.
Soluções locais
Diante das muitas vias possíveis para o futuro, o professor Glaydston Ribeiro destaca que se deve investir no desenvolvimento de tecnologias locais com o intuito de se encontrar saídas para desafios particulares do Brasil.
—Isso colocaria o país numa posição estratégica, porque nossas soluções seriam ‘tropicalizadas’ — afirma ele, ao ressaltar a expertise da Coppe/UFRJ na modelagem de sistemas complexos de transportes e em eletromobilidade. — Estamos falando de respostas para a nossa realidade. Não se pode só replicar uma solução de Copenhague, na Dinamarca, no Rio. Nossa região é diferente, do clima às demandas sociais. É preciso tropicalizar as soluções e replicar, aí sim, em cidades com características parecidas.
Na recente Cúpula da UITP, em Hamburgo, na Alemanha, em junho, esse mesmo debate ecoou. Ao comparar a Europa com a América Latina, o secretário-geral da associação, Mohamed Mezghani, frisou: aplicar modelos de mobilidade não é uma tarefa simples de copiar e colar. É preciso levar em conta, como já cantava Noel, que há “coisa nossa, muito nossa”.
Desafios que o setor precisa enfrentar
Na semana em que o metrô do Rio fez seu primeiro aniversário, a edição do GLOBO de domingo, em 9 de março de 1980, estampou: “Rápido, barato e confortável. Os passageiros, claro, disseram sim”. Trinta e seis anos mais tarde, em 31 de julho de 2016, a primeira página do jornal anunciava: “Sorria, o metrô chegou à Barra” — era o dia seguinte à abertura da Linha 4. Desde então, prestes a completar uma década daquela inauguração, a cidade não ganhou um único quilômetro a mais do modal. As obras da estação Gávea, que tinham ficado para trás, só recentemente foram retomadas. Inércia que, na capital fluminense e em outras cidades brasileiras, tem origem quase sempre nos mesmos obstáculos, que, para especialistas, precisam ser tirados do caminho para destravar o desenvolvimento dos transportes urbanos.
Déficit
A demanda de investimentos é superlativa: R$ 670 bilhões, se considerados apenas 403 projetos de sistemas de transporte público de média e alta capacidades já existentes em 21 regiões metropolitanas do país com população conurbada superior a um milhão de habitantes. O mapeamento é do BNDES com o Ministério das Cidades para o Estudo Nacional de Mobilidade Urbana, em andamento para construir uma estratégia nacional para reduzir o déficit de investimentos no setor. Do total, o estudo propõe a realização de 194 projetos de metrô, trens urbanos, BRTs, VLTs, monotrilhos e corredores de ônibus.
O plano é aumentar em 122% a rede atual implantada, passando dos 2.007 quilômetros de sistemas de transporte público de média e alta capacidades para 4.453 quilômetros. Seriam 2.446 quilômetros de ampliações, sobretudo, nas regiões metropolitanas de São Paulo (563 quilômetros), Brasília (295), Belo Horizonte (230) e Rio (195). Numa próxima etapa do estudo, serão calculados os investimentos requeridos até 2054.
Financiamento
Encontrar formas de financiar obras do setor é um desafio central. Parcerias público-privadas (PPPs) se tornaram uma das saídas. Já Clarisse Linke, do Instituto de Políticas de Transporte e Desenvolvimento (ITDP), defende reposicionar o transporte público como serviço essencial para cidades mais resilientes e adaptadas às mudanças climáticas. Reside aí, afirma, a oportunidade de aproveitar a onda de financiamentos globais ligados a esse cenário:
— Argumento pelo transporte público limpo, que promova a redução do efeito estufa e dos gases poluentes locais. Os projetos também precisam incluir elementos de infraestrutura verde e levar em consideração o aumento da temperatura, as ondas de calor, enchentes e as variações na precipitação.
Subsídios
Onde já há serviços de transportes, a busca é por subsídios à operação, com redução da tarifa para o usuário. A pergunta é: de onde vêm os recursos quando os cofres públicos estão combalidos? No mundo, há alternativas como pedágios urbanos para carros que ajudam a financiar o transporte coletivo. Nabil Bonduki, arquiteto e urbanista da USP, defende a criação de um fundo nacional que poderia ser abastecido pela Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico (Cide) sobre os combustíveis. Em Brasília, discute-se a criação de um Sistema Único de Mobilidade Urbana Sustentável (SUM), com gestão e custo do transporte público divididos entre os governos federal, estadual e municipal.
Foco nos trilhos
Quando o assunto é planejamento, muitas cidades sequer têm planos de mobilidade urbana elaborados. Nos trajetos onde há mais de 30 mil passageiros/hora/sentido, Ana Patrizia Gonçalves Lira, diretora executiva da Associação Nacional dos Transportadores de Passageiros sobre Trilhos (ANPTrilhos), não tem dúvidas de que se deve priorizar os modais de alta capacidade, como metrô e trem:
— Hoje, as cidades não fazem isso. São 1.100 km de trilhos, com 2,6 bilhões de passageiros transportados por ano no país. O potencial de crescimento é enorme. Sobre trilhos, há menos acidentes e poluição.
Expansão
Em São Paulo, apesar de haver empecilhos, há expansão gradativa do metrô. Em Salvador, foi assinada recente autorização para publicação de edital de ampliação da malha metroviária. No Rio, são antigos os planos para extensão da Linha 2, até a Praça Quinze, e para levar a Linha 4 ao Recreio dos Bandeirantes. Com relação à Linha 3 — ligando a capital a Niterói, São Gonçalo e Itaboraí, e na mesa dos políticos desde 1968— o governo do estado contratou este ano a Coppe/UFRJ para a realização de um estudo técnico.
Mesmo diante de compreensível ceticismo, o professor Glaydston Ribeiro, que trabalhou no estudo, garante que é uma expansão factível, inclusive, com um túnel sob a Baía de Guanabara.
— Estamos falando de 2 milhões de pessoas afetadas diretamente pela Linha 3. É imperativo que aconteça — diz ele, citando exemplos de túneis subaquáticos pelo mundo, do Eurotúnel, entre a Inglaterra e a França, em operação desde 1994, ao Fehmarnbelt, entre a Dinamarca e a Alemanha, com previsão de conclusão em 2029.
Rafael Galdo é editor de Rio do GLOBO
Fonte: O Globo
