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O Apagão das Canetas e a Vingança de Quem Constrói Cidades

Danaê Fernandes
Danaê Fernandes
Urbanista, especialista em Engenharia de Tráfego, Planejamento e Gestão de Trânsito, com MBA e experiência profissional em Gestão Pública. Fundadora da empresa URBdata®, coordena o curso de Especialização em Mobilidade Urbana Sustentável da Unyleya e preside o Instituto URBbem.

Como o medo de errar e a falta de liderança sufocam a execução pública e paralisam o avanço das cidades.

Você já ouviu falar de alguma empresa ou conhecido que teve um problema de regularização junto à Prefeitura e ficou meses – às vezes anos – tentando resolver? Ou pior: desistiu no meio do caminho, vencido pela burocracia? Talvez essa pessoa seja você.

Esse tipo de paralisia não é apenas uma falha do sistema. É o sintoma visível de algo que evitamos nomear, mas que todos sentem: o medo. Vivemos uma era em que os órgãos de controle – Ministério Público, Tribunais de Contas, Controladorias – ganharam protagonismo. E com razão. Graças a eles, avançamos em denúncias contra a corrupção, combatemos abusos e resgatamos recursos públicos desviados. Esses mecanismos são absolutamente fundamentais para uma democracia que se pretenda minimamente séria.

Mas toda força, quando desequilibrada, gera distorções. E o que temos visto nas últimas décadas é a hipertrofia do controle, com uma consequente erosão da confiança nos executores.

Imagine a cena: de um lado, numa mesa de reunião de uma prefeitura, quatro ou cinco representantes de órgãos de controle – todos extremamente qualificados, com remunerações de dezenas de milhares de reais. Do outro lado, um servidor do Executivo municipal, que recebe um piso salarial e é responsável por assinar a fiscalização de um contrato. Ele treme da cabeça aos pés, porque sabe que, mesmo sem ter agido de má-fé, pode ter seus bens bloqueados, em processos que, por vezes, duram anos.

Essa cena nem precisa ser diária. Basta que tenha acontecido uma vez – e virado história contada no cafezinho – para instaurar o pânico. Resultado? Ninguém mais quer assinar nada.

Trata-se de um fenômeno conhecido como “apagão das canetas”. Uma tendência real, documentada, mas raramente discutida fora das Prefeituras. Na dúvida, o documento fica parado. A obra atrasa. A cidade estagna.

Se você nunca trabalhou no setor público, talvez esteja franzindo a testa. Mas, nas prefeituras, a ausência de estrutura técnica e pessoal é uma constante. Nem sempre é má vontade – muitas vezes, é simplesmente impossível realizar todas as etapas exigidas pelos normativos.

Certa vez, acompanhei um contrato de manutenção da sinalização viária com uma empresa estatal. O problema? Era impossível, com os recursos disponíveis, quantificar a litragem de tinta gasta por mês. Resultado: ninguém queria assinar como fiscal. Foram necessários 18 meses para criar um sistema de medição adequado, adquirir software, treinar equipe e, finalmente, ter condições de monitorar o contrato com segurança.

E nesse meio tempo? Ou a cidade fica literalmente sem sinalização, ou alguém se arrisca.

Esse dilema é cotidiano. E vai muito além do asfalto ou da tinta na faixa de pedestres. Ele denuncia uma disfunção da máquina pública. O controle é importante, mas não se pode sufocar quem executa. O Executivo vem sendo constantemente desvalorizado, e isso é perigoso para as cidades – porque são justamente esses agentes que tiram as ideias do papel. Que fazem a cidade acontecer.

Um bom termômetro desse desequilíbrio está nos debates sobre “supersalários”. Repare: eles quase nunca envolvem o Executivo. A faixa salarial média do alto escalão em prefeituras está entre R$ 5 mil e R$ 25 mil. Para isso, o gestor abre mão de finais de semana, feriados, e vive permanentemente à disposição – inclusive para lidar com questões meteóricas que precisam ser resolvidas antes que atinjam a população. Com o mesmo engajamento, essa pessoa provavelmente ganharia mais em uma empresa privada. Mas ali está, tentando manter a cidade de pé.

Entenda: a saída para o apagão das canetas não é cortar o controle, mas fortalecer a liderança. E isso começa pela seleção de líderes melhores.

Em 2003, o Chile criou o Sistema de Alta Direção Pública (SADP), como parte de uma ampla reforma do Estado, voltada à profissionalização da alta gestão pública. Seu objetivo central é garantir que cargos estratégicos de liderança na administração pública sejam ocupados por profissionais qualificados, com base em mérito, competências técnicas e gerenciais – e não em indicações políticas.

Após a implantação do SADP, um dado curioso emergiu: mulheres passaram a ocupar, em maior número, os cargos de alto escalão na gestão pública.

Para Rafael Leite, pesquisador brasileiro que estuda internacionalmente o impacto da liderança no setor público, a inovação nas cidades começa com a escolha de líderes competentes. Em seus estudos, ele reconhece que o Brasil ainda não possui um sistema consolidado de alta direção pública – ao contrário de países como o Chile – e que a ampla discricionariedade política na nomeação de dirigentes segue sendo a regra. No entanto, ele destaca o surgimento de estratégias alternativas e experimentais, como o programa “Líderes que Transformam”, promovido pela Escola Nacional de Administração Pública (Enap), como sementes de uma mudança possível.

Enquanto no Brasil predomina a lógica do “cargo de confiança”, o Chile avançou institucionalmente ao formalizar critérios técnicos e processos seletivos objetivos, criando um modelo híbrido, no qual o componente político existe, mas é balizado por uma etapa técnica obrigatória.

Convenhamos: não existe nada mais desmotivador do que ser liderado por alguém despreparado – ou, pior ainda, desinteressado. E talvez essa seja a vingança silenciosa de quem constrói cidades: ao se ver desvalorizado e sem um líder inspirador, simplesmente apaga a caneta.

E a cidade, mais uma vez, fica para depois.

As ideias e opiniões expressas no artigo são de exclusiva responsabilidade do autor, não refletindo, necessariamente, as opiniões do Connected Smart Cities

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O Apagão das Canetas e a Vingança de Quem Constrói Cidades

Danaê Fernandes
Danaê Fernandes
Urbanista, especialista em Engenharia de Tráfego, Planejamento e Gestão de Trânsito, com MBA e experiência profissional em Gestão Pública. Fundadora da empresa URBdata®, coordena o curso de Especialização em Mobilidade Urbana Sustentável da Unyleya e preside o Instituto URBbem.

Como o medo de errar e a falta de liderança sufocam a execução pública e paralisam o avanço das cidades.

Você já ouviu falar de alguma empresa ou conhecido que teve um problema de regularização junto à Prefeitura e ficou meses – às vezes anos – tentando resolver? Ou pior: desistiu no meio do caminho, vencido pela burocracia? Talvez essa pessoa seja você.

Esse tipo de paralisia não é apenas uma falha do sistema. É o sintoma visível de algo que evitamos nomear, mas que todos sentem: o medo. Vivemos uma era em que os órgãos de controle – Ministério Público, Tribunais de Contas, Controladorias – ganharam protagonismo. E com razão. Graças a eles, avançamos em denúncias contra a corrupção, combatemos abusos e resgatamos recursos públicos desviados. Esses mecanismos são absolutamente fundamentais para uma democracia que se pretenda minimamente séria.

Mas toda força, quando desequilibrada, gera distorções. E o que temos visto nas últimas décadas é a hipertrofia do controle, com uma consequente erosão da confiança nos executores.

Imagine a cena: de um lado, numa mesa de reunião de uma prefeitura, quatro ou cinco representantes de órgãos de controle – todos extremamente qualificados, com remunerações de dezenas de milhares de reais. Do outro lado, um servidor do Executivo municipal, que recebe um piso salarial e é responsável por assinar a fiscalização de um contrato. Ele treme da cabeça aos pés, porque sabe que, mesmo sem ter agido de má-fé, pode ter seus bens bloqueados, em processos que, por vezes, duram anos.

Essa cena nem precisa ser diária. Basta que tenha acontecido uma vez – e virado história contada no cafezinho – para instaurar o pânico. Resultado? Ninguém mais quer assinar nada.

Trata-se de um fenômeno conhecido como “apagão das canetas”. Uma tendência real, documentada, mas raramente discutida fora das Prefeituras. Na dúvida, o documento fica parado. A obra atrasa. A cidade estagna.

Se você nunca trabalhou no setor público, talvez esteja franzindo a testa. Mas, nas prefeituras, a ausência de estrutura técnica e pessoal é uma constante. Nem sempre é má vontade – muitas vezes, é simplesmente impossível realizar todas as etapas exigidas pelos normativos.

Certa vez, acompanhei um contrato de manutenção da sinalização viária com uma empresa estatal. O problema? Era impossível, com os recursos disponíveis, quantificar a litragem de tinta gasta por mês. Resultado: ninguém queria assinar como fiscal. Foram necessários 18 meses para criar um sistema de medição adequado, adquirir software, treinar equipe e, finalmente, ter condições de monitorar o contrato com segurança.

E nesse meio tempo? Ou a cidade fica literalmente sem sinalização, ou alguém se arrisca.

Esse dilema é cotidiano. E vai muito além do asfalto ou da tinta na faixa de pedestres. Ele denuncia uma disfunção da máquina pública. O controle é importante, mas não se pode sufocar quem executa. O Executivo vem sendo constantemente desvalorizado, e isso é perigoso para as cidades – porque são justamente esses agentes que tiram as ideias do papel. Que fazem a cidade acontecer.

Um bom termômetro desse desequilíbrio está nos debates sobre “supersalários”. Repare: eles quase nunca envolvem o Executivo. A faixa salarial média do alto escalão em prefeituras está entre R$ 5 mil e R$ 25 mil. Para isso, o gestor abre mão de finais de semana, feriados, e vive permanentemente à disposição – inclusive para lidar com questões meteóricas que precisam ser resolvidas antes que atinjam a população. Com o mesmo engajamento, essa pessoa provavelmente ganharia mais em uma empresa privada. Mas ali está, tentando manter a cidade de pé.

Entenda: a saída para o apagão das canetas não é cortar o controle, mas fortalecer a liderança. E isso começa pela seleção de líderes melhores.

Em 2003, o Chile criou o Sistema de Alta Direção Pública (SADP), como parte de uma ampla reforma do Estado, voltada à profissionalização da alta gestão pública. Seu objetivo central é garantir que cargos estratégicos de liderança na administração pública sejam ocupados por profissionais qualificados, com base em mérito, competências técnicas e gerenciais – e não em indicações políticas.

Após a implantação do SADP, um dado curioso emergiu: mulheres passaram a ocupar, em maior número, os cargos de alto escalão na gestão pública.

Para Rafael Leite, pesquisador brasileiro que estuda internacionalmente o impacto da liderança no setor público, a inovação nas cidades começa com a escolha de líderes competentes. Em seus estudos, ele reconhece que o Brasil ainda não possui um sistema consolidado de alta direção pública – ao contrário de países como o Chile – e que a ampla discricionariedade política na nomeação de dirigentes segue sendo a regra. No entanto, ele destaca o surgimento de estratégias alternativas e experimentais, como o programa “Líderes que Transformam”, promovido pela Escola Nacional de Administração Pública (Enap), como sementes de uma mudança possível.

Enquanto no Brasil predomina a lógica do “cargo de confiança”, o Chile avançou institucionalmente ao formalizar critérios técnicos e processos seletivos objetivos, criando um modelo híbrido, no qual o componente político existe, mas é balizado por uma etapa técnica obrigatória.

Convenhamos: não existe nada mais desmotivador do que ser liderado por alguém despreparado – ou, pior ainda, desinteressado. E talvez essa seja a vingança silenciosa de quem constrói cidades: ao se ver desvalorizado e sem um líder inspirador, simplesmente apaga a caneta.

E a cidade, mais uma vez, fica para depois.

As ideias e opiniões expressas no artigo são de exclusiva responsabilidade do autor, não refletindo, necessariamente, as opiniões do Connected Smart Cities

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