A conexão entre a produção de proteína e a gestão condominial.
Biodiversidade e Tecido Urbano
Já comentei, em outros artigos aqui, que as cidades de hoje são “monocultura de gente”, e que somos vítimas de todos os problemas associados com essa carência de biodiversidade. As cidades modernas são fruto do conluio entre três profissões: o engenheiro civil, o advogado de questões fundiárias e do direito trabalhista, e o médico sanitarista. Este último foi responsável pelo pânico, em diversos momentos no século XIX, relacionado à recém descoberta dos “germes”, “bactérias”, e outros micro-organismos.
Naquele momento histórico, logo após Pasteur identificar a relação entre diversas doenças e a contaminação por organismos microscópicos, passou-se a acreditar que toda profilaxia seria desejável, e que a meta da higiene (pessoal e sócio-urbana) deveria ser a erradicação de qualquer forma de vida que não a humana e alguns animais de estimação (e, mesmo eles, passaram a ser vistos como veículos de doenças). Mesmo que esse pânico seja baseado em fatos científicos – de fato, micro-organismos são responsáveis por inúmeras doenças – ele suscitou uma série de reformas urbanas que são, hoje, vistas como exageradas ou mesmo infundadas. Sabemos, hoje, que o corpo humano (e qualquer outro vertebrado) depende de um bioma que habita sua pele, sistema digestório e sistema respiratório: algumas funções de nosso corpo não podem ser desempenhadas sem esse bioma (como a flora intestinal, por exemplo).
A reboque dessa mania de higiene (apenas parcialmente sustentada pelo conhecimento científico), criou-se a segregação entre meio urbano e meio rural: o primeiro seria a habitação “exclusiva” de seres humanos, e o segundo seria o ambiente no qual os seres humanos iriam desempenhar o controle tecno-científico da natureza para maximizar a produção de alimentos (plantações, pastagens, granjas, chiqueiros, represas, pesqueiros, etc.).
Essa segregação se manifestou no chamado “perímetro urbano”, e foi regulamentada e implementada por órgãos de vigilância de zoonose, por exemplo, que proibiu a criação de animais para consumo alimentício dentro do perímetro urbano. Quanto à produção de vegetais para alimentação, essa proibição não foi implementada de modo tão rígido. Mas, do ponto de vista jurídico, a segregação foi quase que completa: alimentos não poderiam ser produzidos dentro do perímetro urbano, e o meio rural passou a ser visto como um lugar sujo, contaminante, até mesmo perigoso, dada a abundância de outros seres vivos que não seres humanos.
Bom, sabemos que essa segregação é impossível: mesmo após a legislação da zoonose, os “pets” abundam no meio urbano, e praticamente qualquer animal foi criado como pet, dos prosaicos cães e gatos, a porcos, cobras e aranhas – tudo depende do gosto do dono do pet, e da tolerância dos órgãos de regulamentação e vigilância. Além disso, outras espécies oportunistas compartilham o meio urbano conosco: pombos (outrora uma espécie muito valorizada, hoje abandonada), ratos, baratas, e uma multidão de micro-organismos que vicejam nesse caldo de cultura especializada da monocultura de gente – como em uma plantação de soja, quando uma praga entra nesse ambiente, ela se espalha rapidamente por toda a sua extensão.
Mas, essa segregação também é insalubre: o organismo humano precisa não apenas de seu bioma simbiótico – cuja ausência pode nos enfraquecer e matar – como também precisa do contato com a natureza para que possa regenerar-se em múltiplos níveis: do psíquico-emocional, ao fisiológico, por meio do contato com biomas biodiversos nos quais uma enorme variedade de organismos benéficos à nossa saúde estão disponíveis por meio do mero contato físico.
Sabemos, hoje, que a biodiversidade é crucial para nossa saúde integral. E que a profilaxia, mesmo sendo crucial para nossa saúde (como a quase erradicação de alimentos apodrecidos de nossas mesas, e a banalização benéfica das salas de cirurgia completamente esterilizadas), precisa estar em equilíbrio com o contato de espécies simbióticas com nosso organismo.
Em meu último artigo, argumentei a favor de uma “Cidade Agroflorestal”, na qual o tecido urbano abre espaço para que a natureza volte a tomar conta dos seus biomas. Neste artigo, apresento uma solução que é de tamanha simplicidade, que é difícil acreditar que possa ter tantas consequências benéficas para a vida urbana e para a regeneração dos biomas: galinheiros nos condomínios habitacionais.
Galinhas, seus “milagres” e sua industrialização
Há agricultores que chamam galinhas de “porcos que botam ovo”, dado o apetite dessa espécie por praticamente qualquer tipo de alimento e resíduo orgânico. Galinhas são notórias consumidoras de espécies peçonhentas, como cobras, aranhas, escorpiões, dentre outros. E, acima de tudo, elas produzem uma quantidade impressionante de ovos, famosas por superarem a capacidade de consumo dos sitiantes que as criam como forma de controle de pragas e equilíbrio ecológico de seus terrenos.
Além disso, como todo pássaro, o sistema digestivo da galinha tem uma constituição que praticamente garante que parasitas multicelulares, como vermes, larvas e insetos, sejam triturados, provendo as fezes mais adequadas para a adubação, compostagem e regeneração do solo, sem oferecer perigo de contaminação de alimentos, animais de estimação, e a si mesmas.
O ciclo de vida das galinhas é abundante em toda sua extensão: produzem ovos por toda a vida, oferecem esterco de qualidade, e quando são abatidas oferecem proteína saborosa.
Galinhas têm uma relação simbiótica com a humanidade há milênios. Desde o canto de despertar do galo, até seu uso como símbolos nacionais e insígnias, os galináceos são parte da cultura humana.
Até a década de 1950, era comum comprar-se, diretamente de vendedores ambulantes, galinhas vivas nos domicílios de São Paulo, que as matavam e limpavam sob encomenda dos compradores particulares. Essa prática perdurou em outras regiões do país até a década de 1990. A partir dessa época, podemos dizer que a “industrialização da galinha e dos ovos” estava completa: produção quase exclusiva de carne de galinha e ovos a partir de granjas, envolvendo uma série de práticas profundamente problemáticas: uso de hormônio de crescimento e antibióticos em excesso, maus-tratos e confinamento, manipulação genética e ciclo de vida encurtado para incremento de produtividade.
Esse processo de industrialização não apenas levou a galinha para longe de nossos lares, como reduziu a qualidade nutritiva da carne e dos ovos, ambos intoxicados com hormônios e antibióticos. Além disso, assim como a “monocultura de gente” propicia o alastramento de doenças em humanos urbanos, a “monocultura de galinha” propicia o mesmo: gripe aviária?
E se voltássemos a conviver com a galinha e suas benesses?
Galinheiros como parte do serviço condominial
Há como que um “movimento global” pela instalação de galinheiros urbanos. Muitas iniciativas que reconhecem o valor de instalar esse equipamento a uma distância mínima dos domicílios e pontos de consumo, sempre a integrando a um conjunto mais amplo de soluções de sustentabilidade.
Ao instalar galinheiros dentro do perímetro urbano, reaproximamos esse animal valioso de nossos lares – o que pode ser um primeiro passo para a instalação de outros equipamentos de sustentabilidade urbana, como hortas, pomares, soluções baseadas na natureza, agroflorestas urbanas, etc. – e temos a oportunidade de reorganizar e encurtar a cadeia produtiva de proteína animal.
As distâncias que essa cadeia percorre, hoje, são enormes: as granjas de produção industrial de galinhas e ovos ficam, quase sempre, distantes dos pontos de consumo (lares, restaurantes, escolas, hoteis, hospitais, etc.), tanto dentro dos “cinturões verdes” das metrópoles, como em regiões mais distantes, envolvendo uma frota de veículos da carga movidos a combustível (diesel, em geral). A pegada de carbono da produção e distribuição de ovos é tão negativamente relevante que sua produção “sustentável”, “orgânica” ou pelo menos “ecologicamente consciente” é praticamente negativada pela operação logística de seu transporte rodoviário.
Em outras palavras: pouco importa que as galinhas sejam “criadas livres”, que os ovos sejam “livres” de agrotóxicos, hormônios e antibióticos: sua cadeia logística negativa cancela a melhoria do produto. Do ponto de vista da gestão ambiental, podemos ver a produção orgânica de ovos quase como uma operação de “greenwashing”. Em especial, se comparada à produção local dentro do tecido urbano, a uma distância mínima de seu local de consumo.
Mas, como fazer isso? Como transformar galinheiros, a produção de ovos e carne de galinha, em uma atividade que acontece dentro do condomínio urbano?
Do mesmo modo como argumentei a favor da instalação de equipamentos de biodigestão dentro de condomínios urbanos, e que essa instalação depende do desenho e implementação de um serviço – o mesmo valendo para as agroflorestas urbanas –, a instalação de galinheiros urbanos dependerá do desenho desse serviço. Novamente, não se trata de uma “tecnologia” ou um conhecimento técnico pouco conhecido, que requisitaria desenvolvimento científico e novos conhecimentos. Trata-se de um desafio logístico, organizacional e de negócios, que poderia ser resolvido por meio das práticas do “Design de Serviços”.
Desafios do Serviço “Galinheiro Urbano”
Se eu fosse preparar um “briefing” para os Designers de Serviço terem como base para o desenvolvimento de uma solução para galinheiros urbanos, os desafios seriam:
- Levantamento do contexto de instalação e adaptação arquitetônica: Como organizar a instalação dos galinheiros dentro de um condomínio urbano, o qual tem configurações extremamente variadas? Desde aqueles que contam com vastas áreas verdes compartilhadas, até os condomínios verticais desprovidos de jardins, passando pelos condomínios com coberturas generosas, e alas de uso compartilhado que podem ser adaptadas para a instalação dos galinheiros e seus equipamentos de apoio.
- Organização logística local: como se dá a coleta de resíduos orgânicos dentro do condomínio, seu transporte e armazenamento adequado, a seleção local e fornecimento às galinhas? Assim como o uso de ração orgânica para complementar alguma ausência nutricional. Como se dá a coleta de ovos, eventual abate de galinhas (dentro ou fora do condomínio?), sua distribuição para os habitantes do condomínio? Como se dá o controle de qualidade dos ovos e carne?
- Capacitação e treinamento técnico: os galinheiros poderiam, hipoteticamente, ser instalados, mantidos e operados pelos próprios condôminos. No entanto, a vida urbana contemporânea nos privou desse conhecimento técnico, disponibilidade de tempo, prontidão e constância de dedicação. Vemos iniciativas voluntárias de sustentabilidade urbana passarem por um trágico ciclo de “entusiasmo inicial, seguido de abandono e descuidos”. Uma postura realista para a instalação desse tipo de serviço deve contar com uma equipe técnica dedicada e remunerada para esse fim, cujos custos seriam embutidos nos custos gerais do condomínio.
- Modelo de Custos e Receita: O valor de remuneração e manutenção técnica do equipamento deve ser contabilizado para que fosse igual ou menor àquele dedicado à compra de ovos e carne de galinha pelos canais comerciais tradicionais (supermercado, p.ex.).
- Organização logística urbana e metropolitana: é provável que o abate e processamento da carne de galinha dependa de um equipamento localizado fora do condomínio, como um frigorífico compartilhado, por exemplo. Além disso, os insumos e equipamentos de manutenção devem ser organizados de modo compartilhado, organizados por um serviço que opera em centenas, quiçá milhares de condomínios urbanos. Essa logística deve ser parte integral do serviço, e responsável pela economia de escala – fundamental para serviços desse porte.
E é justamente a “economia de escala” que tornaria esse serviço acessível, de baixo custo, para milhares de condomínios. Trata-se de uma operação que a atividade voluntária nunca poderá se equiparar, em termos de dedicação, capacidade técnica, integração de sistemas, organização logística e operacional.
Esses são desafios de caráter organizacional, e não técnicos: há especialistas que são capazes de resolver todas essas questões, mas hoje encontram-se atuando de modo “desintegrado”. O papel do Design de Serviço é coordenar, integrar essas especialidades e um ecossistema pragmático de atendimento à demanda de desenho, instalação, manutenção e operação do “Serviço Galinheiro Urbano”. Se a produção de ovos e carne de galinha é lucrativa para quem a opera nas granjas segregadas fora do perímetro urbano, certamente também o será dentro do perímetro urbano. Resta apenas o esforço de desenhar e implementar esse serviço.
Do ponto de vista da regeneração urbana, o galinheiro de condomínio garantirá pelo menos uma coisa: o fim do resíduo orgânico fora do condomínio. Hoje, a coleta, transporte e destinação de resíduos orgânicos pode ser compreendida como um “desastre ambiental”: os famigerados “aterros sanitários” ainda operam e são fonte de enorme poluição, contaminação ambiental e de lençois freáticos. É impressionante que, ainda hoje, aceitemos que esse “desastre ambiental” aconteça debaixo dos nossos narizes, e que sejamos – nós, habitantes das cidades – a fonte direta desse desastre. A prosaica galinha poderia converter lixo orgânico em ovos e carne, dentro do condomínio, com zero pegada de carbono.
O que é a “Cidade Regenerativa”?
Para muitos, quando falamos sobre o futuro das cidades, o que vem à mente é uma imagem de ficção científica, todos os processos automatizados, lugares assépticos, talvez autômatos circulando pelas ruas, pessoas em habitações minimalistas e alta tecnologia por todo lado. O lugar da natureza, nesses cenários, é à distância, talvez um parque a ser visitado periodicamente. Mas, nesses futuros sci-fi, certamente nossas habitações estariam ainda mais distantes da natureza do que atualmente.
Ao ponderar a respeito de como funciona o ecossistema planetário, percebemos que essa separação é impossível, é uma fantasia criada durante o período industrial, e nossa inevitável simbiose com a natureza é uma relação complexa, a qual exige ser desenhada, reconstruída, ser objeto de estudo e atuação dos urbanistas, planejadores urbanos, empreendedores imobiliários, etc. O futuro das cidades depende de nos re-aproximarmos da natureza, e não o contrário.
É possível que prosaicas soluções, como o “galinheiro urbano”, tenham impacto gigantesco, transformando profundamente nossa relação com a natureza, e permitindo que a Cidade Regenerativa chegue mais rápido e com menos esforço do que imaginávamos.
As ideias e opiniões expressas no artigo são de exclusiva responsabilidade do autor, não refletindo, necessariamente, as opiniões do Connected Smart Cities

Head de inovação na Kyvo e fundador da Bootstrap. Arquiteto e urbanista, há mais de 25 anos pesquisa as complexas relações entre urbanidade, tecnologia, comunidades e inovação. Professor e pesquisador coordenador do grupo Cenários Urbanos Futuros (RITe-FAUUSP), além de consultor em projetos de inovação e transformação organizacional, com abordagem do Metadesign para processos de transformação cultural e urbana.