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PORQUE O ÔNIBUS É SEMPRE A VÍTIMA?

Danaê Fernandes
Danaê Fernandes
Urbanista, especialista em Engenharia de Tráfego, Planejamento e Gestão de Trânsito, com MBA em Gestão Pública. Fundadora da empresa URBdata®, coordena o curso de Especialização em Mobilidade Urbana Sustentável da Unyleya, preside o Instituto URBbem, é Secretária Municipal de Segurança Pública e Trânsito em Cambé/PR

Você já reparou que, nos momentos mais intensos de nossas complexidades e contradições sociais, um ônibus é sempre queimado? Uma ação policial violenta, o aumento de preços de pedágio, o descontentamento político ou até um campeonato perdido. Qualquer acontecimento que gere uma perda real ou a sensação de prejuízo pode levar à destruição de um ônibus em chamas.

A pergunta que fica é: Por que queimar ônibus? Não faria mais efeito queimar um Bugatti, uma caçamba de lixo ou qualquer outro objeto?

A resposta está na simbologia e na funcionalidade do transporte coletivo. O ônibus é um elemento central da vida urbana, carregando um poderoso efeito psicológico. Ele é frequentemente visto como uma extensão do Estado ou do sistema econômico, pois representa um serviço público essencial. Em locais onde a população se sente menosprezada ou explorada, atacar um ônibus pode ser uma forma de expressar indignação contra o governo ou contra negligências de empresas.

Mesmo de forma inconsciente, a população sabe que danificar ônibus leva a problemas contratuais complexos, desencadeando uma trabalhosa sequência de reparação que envolve âmbitos jurídicos públicos e privados, desconfortos administrativos, cálculos financeiros e, principalmente: que a mídia adora.

Tirar fotos de ônibus pegando fogo é quase uma linha própria dentro do ramo fotográfico. Uma imagem que capture a decadência do diálogo urbano e da sinergia entre burocratas, empresas e cidadãos pode ser facilmente sintetizada nas chamas consumindo a carcaça de um veículo de transporte coletivo. É a derrocada da estrutura eficiente dos transportes urbanos. A desintegração do deslocamento coletivo. É o espetáculo do coletivo se autoflagelando.

Claro, os custos do vandalismo não recairão sobre os responsáveis diretos pelo descontentamento. Não é a polícia, o político ou a empresa que adquirirá novos veículos: é o dinheiro do cidadão, através de seus impostos ou da tarifa de transporte, que remediará o feito. Por isso queimar ônibus é uma autoflagelação coletiva.

Mas, para entender melhor a revolta, é preciso considerar a realidade cotidiana de quem depende desse transporte. Pegar um ônibus às 5h da manhã, gastando quase 3 horas em deslocamento todos os dias, não traz bons sentimentos, mesmo. Ninguém pega ônibus porque é uma escolha consciente para a sustentabilidade da cidade: é porque não tem dinheiro para se locomover de outra forma.

Não adianta romantizarmos que o ônibus tem Wi-Fi, que o pagamento por NFC ou PIX facilita a vida: ele ainda demora mais que os modos individuais de transporte para levar as pessoas ao seu destino. E faz isso porque os gestores públicos – aqueles que recebem salários pagos pela população – falham em prover cidades mais justas e eficientes.

Portanto, enquanto o transporte público for sinônimo de precariedade, ele continuará sendo um alvo fácil e simbólico da revolta popular. Afinal, em uma cidade desigual, a indignação sempre encontra um ônibus para queimar.

As ideias e opiniões expressas no artigo são de exclusiva responsabilidade do autor, não refletindo, necessariamente, as opiniões do Connected Smart Cities

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Urbanista, especialista em Engenharia de Tráfego, Planejamento e Gestão de Trânsito, com MBA em Gestão Pública. Fundadora da empresa URBdata®, coordena o curso de Especialização em Mobilidade Urbana Sustentável da Unyleya, preside o Instituto URBbem, é Secretária Municipal de Segurança Pública e Trânsito em Cambé/PR

Você já reparou que, nos momentos mais intensos de nossas complexidades e contradições sociais, um ônibus é sempre queimado? Uma ação policial violenta, o aumento de preços de pedágio, o descontentamento político ou até um campeonato perdido. Qualquer acontecimento que gere uma perda real ou a sensação de prejuízo pode levar à destruição de um ônibus em chamas.

A pergunta que fica é: Por que queimar ônibus? Não faria mais efeito queimar um Bugatti, uma caçamba de lixo ou qualquer outro objeto?

A resposta está na simbologia e na funcionalidade do transporte coletivo. O ônibus é um elemento central da vida urbana, carregando um poderoso efeito psicológico. Ele é frequentemente visto como uma extensão do Estado ou do sistema econômico, pois representa um serviço público essencial. Em locais onde a população se sente menosprezada ou explorada, atacar um ônibus pode ser uma forma de expressar indignação contra o governo ou contra negligências de empresas.

Mesmo de forma inconsciente, a população sabe que danificar ônibus leva a problemas contratuais complexos, desencadeando uma trabalhosa sequência de reparação que envolve âmbitos jurídicos públicos e privados, desconfortos administrativos, cálculos financeiros e, principalmente: que a mídia adora.

Tirar fotos de ônibus pegando fogo é quase uma linha própria dentro do ramo fotográfico. Uma imagem que capture a decadência do diálogo urbano e da sinergia entre burocratas, empresas e cidadãos pode ser facilmente sintetizada nas chamas consumindo a carcaça de um veículo de transporte coletivo. É a derrocada da estrutura eficiente dos transportes urbanos. A desintegração do deslocamento coletivo. É o espetáculo do coletivo se autoflagelando.

Claro, os custos do vandalismo não recairão sobre os responsáveis diretos pelo descontentamento. Não é a polícia, o político ou a empresa que adquirirá novos veículos: é o dinheiro do cidadão, através de seus impostos ou da tarifa de transporte, que remediará o feito. Por isso queimar ônibus é uma autoflagelação coletiva.

Mas, para entender melhor a revolta, é preciso considerar a realidade cotidiana de quem depende desse transporte. Pegar um ônibus às 5h da manhã, gastando quase 3 horas em deslocamento todos os dias, não traz bons sentimentos, mesmo. Ninguém pega ônibus porque é uma escolha consciente para a sustentabilidade da cidade: é porque não tem dinheiro para se locomover de outra forma.

Não adianta romantizarmos que o ônibus tem Wi-Fi, que o pagamento por NFC ou PIX facilita a vida: ele ainda demora mais que os modos individuais de transporte para levar as pessoas ao seu destino. E faz isso porque os gestores públicos – aqueles que recebem salários pagos pela população – falham em prover cidades mais justas e eficientes.

Portanto, enquanto o transporte público for sinônimo de precariedade, ele continuará sendo um alvo fácil e simbólico da revolta popular. Afinal, em uma cidade desigual, a indignação sempre encontra um ônibus para queimar.

As ideias e opiniões expressas no artigo são de exclusiva responsabilidade do autor, não refletindo, necessariamente, as opiniões do Connected Smart Cities

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