Se você torce o nariz para os postos de trabalho “com estabilidade” — isto é, funcionários públicos — saiba que são exatamente essas pessoas que podem transformar tudo o que você pensava sobre liderança. É no setor público que se descobre o verdadeiro teste de paciência, resiliência e, acredite, criatividade na gestão de pessoas.
A carreira de funcionário público é o sonho dourado de muitos. Afinal, estabilidade, progressões automáticas, salários corrigidos anualmente, bônus, licenças premium e uma lista de benefícios digna de inveja são praticamente exclusivos desse universo. Não estou dizendo que a vida no serviço público é fácil, mas é inegável que a relação entre benefícios e cobranças é mais generosa do que a maioria das empresas privadas pode oferecer.
Sou filha de funcionários públicos, e respeito profundamente a importância desses cargos para o país. Mas também sou empresária, e já fui gestora municipal. Com base na minha experiência, liderar no setor privado e no setor público são exercícios completamente diferentes — o primeiro é um jogo de estratégia, e o segundo, um verdadeiro campo minado.
Privado: onde eficiência é tudo
Na minha empresa, o princípio é claro: não importa onde ou quando o trabalho acontece, desde que ele seja entregue com qualidade e no prazo. A lógica é simples: funcionários motivados e engajados produzem mais, e isso reflete diretamente nos resultados. Já tive, por exemplo, uma arquiteta que aparecia no escritório de pijamas em dias de trabalho interno, e isso nunca me tirou o sono. O que importa é o desempenho, não o figurino.
Liderar no setor privado dá liberdade para recompensar quem se destaca e ajustar quem não entrega. Há ferramentas claras: você promove, reconhece, incentiva, ou, em último caso, desliga quem não está alinhado. O objetivo é criar um ambiente produtivo, com pessoas dispostas a crescer e a colaborar.
Público: o campo minado da liderança
Agora, transfira esse modelo para a gestão pública e veja a equação mudar completamente. Como secretária municipal, percebi que as ferramentas tradicionais de liderança eram, no mínimo, limitadas. O único requisito oficial era que os funcionários batessem o ponto no horário certo. Mais do que isso, era um risco: sugerir cursos, cobrar prazos ou exigir excelência poderia ser interpretado como assédio moral e resultar em processos judiciais.
E os processos não são raros. Graças a gestores horríveis do passado, que abusaram do poder, hoje qualquer funcionário pode relatar, anonimamente, desvios de conduta do chefe. Isso é uma proteção legítima, mas também uma arma de dois gumes. Uma denúncia infundada pode manchar a reputação de qualquer gestor, mesmo o mais bem-intencionado. E o denunciante? Esse segue sem ônus algum, como se nada tivesse acontecido.
Nesse cenário, liderar significa depender exclusivamente da motivação intrínseca de cada funcionário. Há, sim, servidores brilhantes e dedicados. Mas também há aqueles que não têm o menor interesse em colaborar. E você, como líder, precisa lidar com essa disparidade sem as ferramentas de incentivo ou punição que existem no setor privado.
Boicotes, apatia e o peso da estabilidade
Uma das coisas mais frustrantes que presenciei foi o boicote interno: funcionários cruzando os braços, não por falta de capacidade, mas por pura má vontade. Em alguns casos, o boicote era explícito; em outros, sutil, mas igualmente prejudicial.
Para os servidores dedicados, isso era ainda pior. Eles se viam sobrecarregados, compensando a inércia dos colegas. Muitos se sentiam injustiçados e, com razão, desmotivados. Afinal, por que alguém deveria se esforçar além do mínimo, se os resultados não seriam reconhecidos e a remuneração seria a mesma para todos?
No setor privado, liderar é mais direto: sua equipe te segue por dois motivos claros — porque você garante o funcionamento das coisas e remunera quem colabora. No setor público, é outra história. A remuneração não tem relação com produtividade e, em muitos casos, “funcionar” não é exatamente um pré-requisito.
Quando a liderança ganha significado
Mas aqui está a mágica do setor público: os funcionários só seguem um líder quando realmente acreditam nele.
Se sua equipe sente que você os protege, que trabalha por eles e que compartilha suas aspirações para a cidade, eles estarão ao seu lado. Não por obrigação, não por receio de demissão, mas porque enxergam em você alguém que faz sentido. Essa é a liderança no setor público: conquistar uma aprovação genuína, desprovida de interesses secundários.
Quando isso acontece, o resultado é transformador. Você descobre que liderar vai além de definir metas ou cobrar prazos. É sobre criar conexões humanas reais, inspirar confiança e fazer com que as pessoas queiram, de fato, fazer parte de algo maior.
E aí, depois de liderar no setor público, encarar a gestão privada é quase um alívio. Você aprendeu a lidar com conflitos mais complexos, a engajar pessoas que não têm obrigação de te seguir e a inspirar céticos.
Se algum dia você tiver a chance de liderar no setor público, aceite. Será desafiador, frustrante e, muitas vezes, exaustivo. Mas você sairá dessa experiência com habilidades que nenhum MBA é capaz de ensinar — e com histórias que poucos no mundo corporativo seriam capazes de acreditar.
As ideias e opiniões expressas no artigo são de exclusiva responsabilidade do autor, não refletindo, necessariamente, as opiniões do Connected Smart Cities.

Urbanista, especialista em Engenharia de Tráfego, Planejamento e Gestão de Trânsito, com MBA em Gestão Pública. Fundadora da empresa URBdata®, coordena o curso de Especialização em Mobilidade Urbana Sustentável da Unyleya, preside o Instituto URBbem, é Secretária Municipal de Segurança Pública e Trânsito em Cambé/PR