A conexão entre saneamento básico, energia, design de serviço e o aquecimento global.
Este é o primeiro artigo da série em que falarei de um conjunto de inovações urbanas que podem transformar as cidades em ambientes sustentáveis e regenerativos, acolhedores ao bem-estar das pessoas e do meio-ambiente, e capazes de lidar com as transformações do clima. Falarei de conceitos, propostas, tecnologias e empreendimentos que ainda estão ausentes do discurso das inovações urbanas.
Em geral, as inovações que figuram nas “visões de futuro” para as cidades inteligentes, resilientes e sustentáveis têm a ver com: digitalização, integração e automação de processos, economia e decisões baseadas em dados, o uso de redes de dispositivos digitais (IoT), a organização da cidade como uma rede de serviços integrados (como o MaaS, p.ex.), etc.
Por outro lado, frente às demandas da transformação climática e às necessidades do meio-ambiente, as propostas destas “visões de futuro” se limitam a pequenos movimentos e ajustes nas práticas urbanas. Precisamos de uma transformação urbana intensa, radical: as cadeias produtivas e a infraestrutura urbana consagrada na urbanidade industrial e contemporânea não endereçam as questões da sustentabilidade e da transformação climática, e não reconhecem a necessidade da regeneração sócio-ambiental.
Como mencionei em meu artigo anterior, as cidades do futuro serão entidades muito diferentes do que foram até agora: falarei aqui de inovação urbana que poderia encaminhar essas necessárias transformações.
Saneamento Básico segundo a visão tradicional das cidades
É consenso quase absoluto que “saneamento básico”, nas cidades, é conectar todos os sanitários de domicílios, unidades comerciais e industriais à rede de esgoto. Mas, o que é a rede de esgoto?
Em meados do século XVIII, iniciou-se uma série de reformas urbanas, especialmente na Europa, que criaram o que hoje chamamos de “cidades modernas”. Parte dessas reformas foram as obras de saneamento, cuja parte mais evidente consistia no sistema de esgoto: sistemas de concentração dos efluentes humanos em grandes dutos subterrâneos, o material orgânico conduzido a corpos d’água de grande porte, como rios, lagos, mares e oceanos. O sistema foi concebido para cidades muito menores do que as contemporâneas, e é anterior ao desenvolvimento da moderna ciência médica, biológica e ecológica. Naquele momento histórico, foi a convergência técnica entre três fatores:
1 – Saúde Pública – a necessidade de separar-se seres humanos de suas excreções;
2 – Urbanização – o incremento histórico da concentração territorial dos assentamentos humanos;
3 – Topografia – o sistema de esgoto opera por simples gravidade: inevitavelmente, o local onde se concentra o esgoto é o mesmo em que se concentram os grandes corpos d’água (rios, mares, etc.).
Essa convergência criou uma situação em que é quase inevitável contaminar-se rios e oceanos com dejetos humanos e seus subprodutos.
Para tentar resolver essa questão, criou-se, a partir de meados do século XX, as chamadas Centrais de Tratamento de Esgoto. A proposta é o tratamento da água contaminada para que possa retornar à natureza o mais limpa possível. O grau de sucesso dessas iniciativas é sempre limitado, por dois motivos:
1 – O percurso entre origem das excreções humanas e as centrais de tratamento implica em um processo químico e biológico que transforma esse material em um “lodo tóxico”, agressivo à maior parte dos seres vivos (bactérias) que poderiam eliminá-lo por meios naturais.
2 – Durante esse percurso, boa parte do material orgânico é convertido em gases voláteis e combustíveis: famosos por seu odor (gás metano, principalmente), têm altíssimo impacto sobre o efeito estufa (aquecimento global) e a redução da camada de ozônio (responsável pela capacidade atmosférica em bloquear os raios ultra-violeta).
A maior parte das cidades do chamado “mundo desenvolvido” conta com amplas e abrangentes redes de saneamento básico que operam com base nos sistemas de esgoto e centrais de tratamento. Mas, em retrospecto – após 200 anos de desenvolvimento urbano e científico – fica claro que essa não é uma solução, e sim um exemplo do clássico “varrer a sujeira para debaixo do tapete”. Não se resolve o problema complexo do saneamento básico, a humanidade “terceiriza” o problema para a natureza, que não dispõe de meios adequados para fazer essa “limpeza”.
Exemplos graves dessa terceirização, e de nosso intenso esforço em esconder e ignorar esse problema, são:
- contaminação generalizada dos corpos d’água, com graves consequências para a natureza e para o suprimento de água limpa para os cidadãos. Sua pior expressão é a contaminação dos lençois freáticos, vista como irreversível e muito perigosa para o futuro do meio ambiente e da humanidade.
- criação dos “emissários”: dispositivos que levam o esgoto para longe das praias e da orla marítima, garantindo um incremento da qualidade da água na orla, para o prazer dos banhistas e a viabilidade comercial do turismo de balneário costeiro, mas em nada reduzindo a contaminação das águas e do ecossistema.
- criação de mais uma “monocultura humana”: do mesmo jeito que “cidades são monocultura de gente”, e nela estamos acompanhados de espécies parasitas e simbióticas (ratos, baratas, pombos e bacilos, como o Coronavírus), criamos contextos de hiper-especialização no meio ambiente, pois os locais onde se concentram os dejetos humanos são o mesmo lugar onde se concentram espécies que, em parte, se beneficiam dele, reduzindo-se a biodiversidade e hiper-contaminando o meio-ambiente.
Para piorar a situação, as bactérias que habitam o bioma vivo de nossas excreções emitem gases de efeito estufa poderosíssimos, em especial o gás metano, que é 60 vezes mais intenso para o aquecimento global do que o gás carbônico (emitido pela queima de combustíveis fósseis, madeira e gás mineral). Seria melhor queimar esses gases do que liberá-los na atmosfera, como fazem os sistemas tradicionais de saneamento básico.
Na prática, escondemos de nós mesmos os problemas que causamos, do mesmo jeito que uma criança acredita ficar invisível quando tapa os olhos.
O que podemos fazer?
Praticamente todos os produtores de suínos no Brasil contam com um sistema de biodigestão acoplado à criação de porcos. Os biodigestores são ambientes controlados (campânulas, reatores e outros dispositivos) que concentram os efluentes dos animais, e permitem que os micro-organismos que compõem as fezes façam a digestão completa daquele material. O resultado é água em baixa contaminação – predominantemente ácidos e alta concentração de sais minerais – e muita quantidade de gases combustíveis, que são queimados para geração de energia elétrica ou para uso da chama (cozinha, aquecimento, etc.). Há criadores de suínos que ganham mais dinheiro com energia elétrica do que com a comercialização da carne de porco.
Outra situação comum é o arranjo entre criação de suínos e outra atividade, como a produção industrial de cerâmica, que utiliza grandes quantidades de combustível para a queima das peças. O produtor industrial de cerâmica torna-se, também, um produtor de suínos porque esse arranjo produtivo (suínos + cerâmica), mesmo sendo inusitado, é altamente rentável, tornando o ceramista completamente independente em termos energéticos, zerando seu custo com compra de energia da rede pública.
Os reatores de biodigestão são uma tecnologia relativamente barata, amplamente conhecida dos engenheiros e especialistas, e garantem a conversão do efluente animal em subprodutos úteis e de baixa toxicidade. Trata-se de uma tecnologia que podemos classificar como “banal”, dada sua disseminação em alguns setores da economia, agricultura e geração de energia elétrica.
Mas, a mesma solução poderia ser utilizada no meio urbano, com a instalação de reatores de biodigestão em lotes urbanos. Neste caso, seria uma revolução no saneamento básico urbano: no lugar de grandes sistemas de esgoto, que parecem resolver o problema do saneamento causando um desastre ambiental (o sistema de esgoto é inerentemente poluente), teríamos a solução do saneamento básico dentro do lote urbano.
Cada condomínio urbano poderia contar com um sistema de biodigestão integrado ao seu sistema de saneamento: todos os efluentes humanos seriam concentrados em reatores dentro das dependências do condomínio, gerando energia elétrica em relativa abundância, e resíduo líquido que pode ser utilizado na irrigação de jardins e árvores. Portanto, a utilização de biodigestores dentro dos condomínios urbanos poderia erradicar o problema da poluição das águas pelos efluentes humanos e destinar os gases combustíveis para produção de energia. Isso tornaria os sistemas de esgoto completamente obsoletos. De fato, há uma vasta literatura científica que estuda essa tecnologia e defende seu uso mais popularizado
O que falta para implementar essa solução?
O problema do uso massivo do biodigestor em um contexto urbano não é tecnológico, e sim organizacional e empreendedor. Trata-se da criação de um novo tipo de empreendimento e sua organização social e financeira: o biodigestor, mesmo sendo uma tecnologia relativamente banal, precisa ser convertido em um serviço de consumo de massa. O empreendimento público e/ou privado que ofertará esse serviço deverá coordenar as seguintes atividades:
- avaliar o condomínio ou conjunto de domicílios para se definir o tamanho, formato e tipologia do equipamento a ser instalado;
- monitoramento profissional, automatizado e constante deste equipamento 24 horas por dia, 7 dias por semana, verificando sua produção de efluentes, gás combustível e energia;
- implantação de um sistema integrado de balanceamento de carga para compensar variações nos volumes produzidos de efluentes, gás e energia, integrando diversas centrais geradoras e o sistema público de energia, por meio de smart-grid;
- para dar conta de todo esse processo, é necessário o desenvolvimento de tecnologias secundárias, tanto para o projeto e implantação dos equipamentos, como para o seu monitoramento digital em tempo real;
- organização de equipe(s) de monitoramento, implantação, manutenção, reparos e atualizações do sistema.
Trata-se de um novo tipo de serviço de consumo de massa, bastante similar ao serviço urbano de fornecimento de gás combustível encanado, como aquele feito pela empresa paulista Comgás. Seria uma rede integrada de biodigestores espalhados por milhões de condomínios e conjuntos de domicílios, permitindo economia de escala, balanço de carga, monitoramento profissional capacitado e automatizado.
Design de Serviço
Na realidade, a descrição que apresento acima é o “briefing” para uma ação de design de serviços. O “briefing” é o documento que descreve a demanda para profissionais de design, e outras áreas de projeto, utilizado como a orientação fundamental para o desenvolvimento de, em nosso caso, um novo serviço. As atividades do design de serviço envolvem a compreensão das características de uma tecnologia, seu valor para a sociedade e para os consumidores, a compreensão da cultura e modo de pensar dos consumidores e cidadãos, as necessidades de capacitação do corpo técnico da empresa que prestará o serviço, e a exploração das múltiplas experiências de usuário: desde o consumidor final (habitante de domicílios e condomínios) até a equipe técnica de monitoramento 24/7, passando pelos coordenadores técnicos que observam e realizam o balanço de carga do sistema, etc. E, claro, realizam os estudos de modelo de receita e viabilidade financeira de tal serviço.
Podemos afirmar que o único obstáculo entre a existência da “tecnologia biodigestão” e sua conversão em um “sistema de consumo de massa” é a realização desse projeto de design de serviço. Ou seja, resta a criação desse serviço em todos os seus detalhes operacionais, organizacionais e financeiros.
Inovação, desenvolvimento e colonialismo
Há anos, falo a respeito da promessa da biodigestão: revolucionar o saneamento básico urbano brasileiro e internacional. Surpreendentemente, é baixíssimo o interesse das empresas operadoras de energia, saneamento, gestão de condomínios, governos e gestores ambientais.
O principal motivo para esse baixo interesse é que o Brasil ainda é um país colonizado: mesmo que muitas novas ideias surjam por aqui, os gestores locais não compreendem que uma inovação pode surgir do Brasil, e acreditam que temos que importar inovação, “como sempre fizemos”.
Afinal, mesmo que não sejamos mais formalmente uma colônia, ainda somos colonizados culturalmente. Já escutei muitas vezes, de gestores públicos e privados, algo parecido com: “De fato, sua proposta é interessante, original e promissora. Mas, prefiro ver seu surgimento fora do Brasil, aguardar sua consolidação no contexto internacional, para depois importá-la.”
Por outro lado, se formos aguardar os chamados “países desenvolvidos” proporem um serviço metropolitano de biogás, essa inovação pode nunca acontecer. Afinal, esses países já estão com “o problema resolvido”: quase a totalidade dos domicílios estão ligados ao sistema de esgoto, e a “pseudo-solução” das centrais de tratamento de esgoto são amplamente aceitas como “a solução padrão” para o saneamento básico.
No entanto, em países como Brasil, Índia, Nigéria e Indonésia, por exemplo, a maior parte da população está desconectada dos sistemas de saneamento. Para eles, a solução do biogás não seria apenas uma solução mais barata, sustentável e avançada, seria também uma solução superior, frente àquilo que os países chamados “desenvolvidos” conseguiram criar para si durante o período industrial.
Nas discussões a respeito de inovação e desenvolvimento nacional, fala-se do fenômeno chamado “leap frogging” (“pulo do sapo”): quando um país “pula” uma etapa de desenvolvimento e vai para um estágio mais avançado que os países desenvolvidos. Um exemplo ululante é o sistema financeiro: países como Japão e Alemanha têm sistemas relativamente primitivos, desprovidos de serviços considerados “básicos” em países como Brasil, Quênia e China: transferências instantâneas, economia baseada em pagamentos digitais – serviços amplamente disponíveis nos países chamados “emergentes” ou “subdesenvolvidos”, que ainda contam com uma grande população “desbancarizada” (pessoas sem acesso a conta bancária), que, mesmo assim, são usuários de serviços financeiros digitais (PIX, cartão digital de uso único, etc.).
O que chamamos de “desenvolvimento”? É possível imaginar um futuro no qual os países que foram, até pouco tempo, “subdesenvolvidos” sejam aqueles que lideram o desenvolvimento urbano sustentável e regenerativo? Inovações, como um “serviço metropolitano de biogás”, serão o futuro do saneamento básico? Será o Brasil o pioneiro mundial desse serviço? E países que seguiram o “padrão europeu” de saneamento básico serão vistos, no futuro, como países subdesenvolvidos neste setor?
Série de artigos sobre inovações urbanas
Inicio, com esse artigo, uma série que irá explorar cenários urbanos futuros, apresentando visões inovadoras para as cidades. Em alguns desses artigos, falarei a respeito de inovações tecnológicas, mas sempre às relacionando com as inovações organizacionais, em serviços, de transformações em hábitos, novas formas de ver e habitar a cidade: um novo olhar sobre as cidades, baseado na ciência ambiental, na antropologia e nas práticas do Metadesign, que permitem vislumbrar outro futuro para as cidades brasileiras e do mundo.
As ideias e opiniões expressas no artigo são de exclusiva responsabilidade do autor, não refletindo, necessariamente, as opiniões do Connected Smart Cities
Head de inovação na Kyvo e fundador da Bootstrap. Arquiteto e urbanista, há mais de 25 anos pesquisa as complexas relações entre urbanidade, tecnologia, comunidades e inovação. Professor e pesquisador coordenador do grupo Cenários Urbanos Futuros (RITe-FAUUSP), além de consultor em projetos de inovação e transformação organizacional, com abordagem do Metadesign para processos de transformação cultural e urbana.