Os modelos de atuação poderiam ser diversos, desde um modelo tradicional de assessoria técnica até a própria cessão temporária de profissionais especializados para compor a equipe técnica do ente subnacional
A Lei das Parceiras Público Privadas (PPPs) completa 20 anos em 2024. Tive a oportunidade de acompanhar a evolução desse modelo contratual desde sua origem no país. Apesar da tendência natural de usualmente concentrarmos esforços nas críticas e sugestões para aperfeiçoamento das PPPs, é preciso fazer um reconhecimento que evoluímos.
Tendo a concordar com aqueles que descrevem o mercado brasileiro de PPPs como um dos mais dinâmicos e diversificados do mundo. Também é notória a amplitude e densidade do desenvolvimento da produção intelectual nacional sobre o tema, seja em questões regulatórias, jurídicas, técnicas e econômico-financeiras. Saltam aos olhos a quantidade de cursos, certificações, seminários, livros, artigos e premiações que as PPPs fomentam. Temos hoje um verdadeiro ecossistema de PPPs, cujas engrenagens estão em pleno funcionamento.
De forma sucinta, podemos resumir o ciclo de vida de uma PPP em 5 grandes etapas: modelagem do projeto, licitação, implementação, gestão do ativo e encerramento contratual. Apesar da interlocução entre parceiros públicos e privados ocorrer, em alguma medida, em todas essas etapas, é possível afirmar que as 2 primeiras são orquestradas pela administração pública ao passo que as 3 últimas tem um maior protagonismo do ente privado. É exatamente nessa transição de liderança que reside o gap de gestão identificado para ser tratado nesse artigo.
É a minha percepção que o ecossistema das PPPs dedica a maior parte de seus esforços no aperfeiçoamento das modelagens contratuais. Tal aspecto não surpreende, uma vez que o contrato precisa nortear uma complexa relação de interdependência público-privada durante vários anos ou décadas. Logo em seguida, verifica-se uma forte mobilização dos agentes do setor de infraestrutura na produção de discussões e propostas voltadas à regulação dos contratos. Tal conclusão pode ser alcançada pela frequente incidência do tema “reequilíbrio econômico-financeiro” nos fóruns de discussão de diferentes segmentos da infraestrutura (transporte, mobilidade urbana, saneamento, iluminação pública, dentre outros). Também não há o que se questionar sobre a relevância dessa matéria para o fortalecimento do ambiente das PPPs.
Todavia, baseado em minhas próprias experiências e em relatos recentes de colegas do setor, tenho tomado conhecimento de situações críticas e recorrentes que se materializam no período compreendido entre o final do processo licitatório e a implementação do projeto (fase mais intensiva em investimentos). Esse parece ser um “ponto cego” no ciclo das PPPs, ainda pouco discutido e endereçado pelos envolvidos.
Em geral, essas ocorrências são observadas em algum ponto entre o cumprimento das condições precedentes para assinatura do contrato e o final da etapa de implementação do projeto. São obrigações, geralmente, previstas expressamente em contrato, porém desprezadas por uma das partes ou ambas. Por vezes, são simples princípios de boa gestão e governança que acabam sendo ignorados. Convém denominá-los de desvios administrativos precoces. Elenco aqui alguns deles:
- Atraso ou inércia na contratação do Verificador Independente;
- Descumprimento ou atraso na contratação de instituição financeira responsável pela custódia dos pagamentos e/ou garantias;
- Descumprimento dos pagamentos de contraprestação e/ou constituição de garantias sem a devida fundamentação;
- Falhas ou atrasos no cumprimento de condições precedentes à assinatura do contrato e/ou da eficácia contratual (constituição da SPE, desapropriações, licenças) por omissão ou ineficiência;
- Assinatura do contrato e emissão de ordem do serviço sem devido cumprimento das obrigações mútuas;
- Execução de investimentos pelo privado sem o devido lastro financeiro disponibilizado pelo ente público para pagamento das contraprestações/garantias;
- Início de execução do contrato sem as devidas aprovações legislativas estruturantes;
- Assimetria de conhecimento entre a equipe de gestores públicos que acompanhou a modelagem do projeto e as equipes destacadas para a gestão e fiscalização do contrato;
- Atendimento a solicitações do gestor público em desacordo com o escopo contratual e sem a devida formalização e análise de impactos econômico-financeiros.
Verifica-se que muito embora essas situações têm como agente ativo o próprio gestor público, alguns concessionários convivem passivamente com esses desvios administrativos, contribuindo para um precedente arriscado na forma como a gestão contratual é executada. Ignorar esses sinais de alerta logo no início da relação público-privada gera efeitos negativos que abalam o alicerce da parceria. A fase inicial de um contrato de PPP é um marco crítico. Apostar em improvisos no curto prazo, como forma de assegurar estabilidade no longo prazo, pode custar caro. Eis algumas das consequências e externalidade negativas dessa prática:
- Eventual interrupção dos serviços em função de desconformidade da gestão contratual detectada por órgãos de controle, gerando prejuízos para a população e para a administração pública;
- Punições e penalidades para agentes públicos e privados;
- Extinção prematura do contrato, gerando custos transacionais adicionais e perda da vantajosidade projetada na modelagem do projeto e na licitação.
- Maior assunção de risco pelo ente privado, o que pode vir a comprometer sua sustentabilidade econômico-financeira e descontinuar a prestação dos serviços ou afetar sua qualidade;
- Insuflar complexidade e subjetividade nas discussões contratuais ao longo de toda a extensão da PPP, acarretando: maior judicialização de pleitos, prazos mais extensos para resolução de disputas e desgaste no relacionamento institucional entre as partes;
- Depreciação da credibilidade do ente federativo contratante junto ao mercado;
- Depreciação da credibilidade do mercado ou segmento objeto da PPP.
A boa notícia é que esses desvios e suas consequências são evitáveis e as soluções podem ser extraídas de aparatos já disponíveis atualmente. Através da participação ativa de estruturadores públicos de projetos bem com de organismos multilaterais, entendo ser possível disponibilizar produtos e assessorias dessas facilities no período pós-licitatório. Tais entidades seriam, em minha opinião, as mais vocacionadas para apoiar estados e municípios nas fases de contratação e implementação do projeto, assegurando a estabilidade institucional, tão necessária em marcos críticos das PPPs.
Os modelos de atuação poderiam ser diversos, desde um modelo tradicional de assessoria técnica até a própria cessão temporária de profissionais especializados para compor a equipe técnica do ente subnacional. Além de cobrir esse “ponto cego” das PPPs, a atuação das facilities nessa fase inicial, aportaria, de forma subsidiária, conhecimento para o aprimoramento das próprias modelagens de futuros projetos.
As ideias e opiniões expressas no artigo são de exclusiva responsabilidade do autor, não refletindo, necessariamente, as opiniões do Connected Smart Cities.

Formado pela PUC-Minas em Administração. Tem pós-graduação em marketing pela Fundação Dom Cabral (FDC), em finanças pelo IBMEC, extensão em parcerias público-privadas pela Partnerships UK, além de ter participado da EY Harvard Leadership Program. Gusmão trabalha na EY desde agosto de 2007 e hoje atua como sócio na área de infraestrutura, além de ser coordenador do Comitê de Iluminação Pública da ABDIB (Associação Brasileira da Infraestrutura e Indústrias de Base).