Como todo computador, o smartphone é um “camaleão funcional”: capaz de absorver as funções de outros dispositivos e assumir seus lugares
O companheiro mais constante
Neste artigo, falo de um artefato que transformou completamente nossa relação com a cidade, os modos de fazer relações sociais, a economia, afetos e nossa própria identidade. O smartphone se tornou onipresente em menos de 10 anos. E, depois, se tornou invisível. É crucial voltar a olhá-lo como algo novo, de modo crítico e criativo. O futuro das cidades e da sociedade pode depender disso.
Tamagotchi
Há pouco tempo, circulou uma imagem curiosa: um anúncio do início da década de 1990, dezenas de produtos com as mais variadas funções – relógio despertador, câmera de vídeo, TV, computador pessoal, GPS, walkman, etc. Hoje, todos estão integrados em um único dispositivo: o smartphone.
Como todo computador, o smartphone é um “camaleão funcional”: capaz de absorver as funções de outros dispositivos e assumir seus lugares. Aparentemente, da noite para o dia, surge esse pequeno computador portátil que articula uma rede pessoal de dispositivos eletrônicos, uma nuvem de objetos e aparelhos que fazem a interface entre nós e o mundo de hoje.
É a janela por meio da qual temos acesso a um mosaico de serviços complexos, um ecossistema em constante crescimento e transformação, que engole um espaço cada vez maior de nossas vidas. Nossa paisagem pessoal, urbana, doméstica, profissional, familiar e afetiva foi completamente transformada pelo smartphone.
Quando surgiram na década de 1990, os Tamagotchi pareciam algo absurdo: dar atenção constante a um dispositivo eletrônico (alimentar o “bicho virtual”), tê-lo atado ao corpo, 24 horas por dia, 7 dias por semana. Passados 25 anos, cá estamos “alimentando” outro aparelho que nos exige atenção e afeto. No entanto, quando acariciamos a superfície de vidro de nossos “tabletes”, estamos interagindo com um mundo que se encontra além daquela telinha. A diferença: existem seres vivos reais por trás dela.
“Mundo digital” ou “smartphone”?
Usa-se um termo “mundo digital” para descrever o conjunto de plataformas digitais altamente integradas. Esse termo vago oculta o papel sócio-urbano do smartphone: as redes sociais, plataformas governamentais, e-commerce, credenciais digitais, e outros serviços não são acessados de qualquer dispositivo (laptops, desktops, totens, terminais corporativos, etc.), e sim por intermédio de um único dispositivo, o smartphone. Os outros estão relegados a um segundo plano da paisagem social e urbana dominada por essa janela principal, que delega funções secundárias às outras.
Talvez, o que mais chama a atenção na cena urbana de multidões usando smartphones é seu tamanho diminuto: como um radinho de pilha de antigamente, cabe no bolso, mas, colado no rosto, domina nossa visão, audição e tato. Mesmo pequeno, se tornou o meio pelo qual construímos quase a totalidade de nossa presença social nas cidades – de transporte e encontros sociais, alimentação e contatos profissionais, transações bancárias e de ativos financeiros, credenciais institucionais e de governo.
Nas décadas de 1990 e 2000, imaginava-se que a inclusão digital viria pelo computador desktop conectado à Internet – ela se realizou no smartphone. Mas, trata-se de uma inclusão igualitária? Todos veem o mesmo “mundo digital” na telinha do aparelho? Ou estamos reproduzindo a mesma segregação social que vemos no mundo “não digital”?
A imagem de uma época
Não é estranho ver um filme do século passado? As pessoas andavam pelas ruas olhando para a cidade! Caso se perdessem, ficariam assim até encontrar alguém para pedir orientações. Em uma festa, interagíamos uns com os outros, com os objetos da casa e os anfitriões, os animais e as plantas do jardim.
Interagíamos intensamente com outro “retângulo”, os livros: pilhas de papel impresso que dominavam a comunicação social. Da Idade Média à década de 2000, as pessoas liam livros e suas variações, revistas, jornais e folhetos, em todos os lugares: nas ruas, metrô, ônibus ou aviões, em casa, na cama, no banheiro. Hoje, todos esses momentos “retangulares” foram sequestrados pelo smartphone.
Fato histórico, antes e depois do smartphone.
O Smartphone se tornou um “marcador de época”: sabemos que estamos vendo uma cena atual quando todos estão com a cara enfiada no celular. Um fato histórico para o qual não estávamos preparados.
Certamente, o smartphone é nosso companheiro mais constante: interagimos mais com ele do que com qualquer pessoa. Nele, depositamos nossa autoimagem, nossas coisas mais privadas, a intimidade mais profunda, até aquilo que não admitimos para ninguém. Por seu intermédio, falamos de nós mesmos e nossas múltiplas personalidades, nossas várias vidas e facetas.
Registramos todos os dados institucionais – contas de banco, cartões de crédito, documentos pessoais e profissionais, credenciais e passagens de avião. Nossa vida pessoal, bancária, produtiva, emocional e até sexual está registrada no smartphone. Também é biblioteca, sala de cinema, guichê do correio, supermercado, lanchonete e bandejão.
Seria um objeto de adoração? É espelho, pois, não apenas nos vemos por intermédio dele, como também vemos a imagem dos outros, do mundo e do sentido da vida provido pelo contato social. Cada vez mais, especialmente os jovens, compreendem o mundo por meio da janelinha digital, e pouco por intermédio das interações cara-a-cara. O que é interação social, hoje e no futuro? Será que veremos uma geração inteira que nos parece isolada, mas que, no celular, vive em uma sociedade frenética?
Crítica ao smartphone
Ao mesmo tempo que “moramos” no smartphone, também achamos um pouco ridícula a situação de não conseguirmos nos desgarrar do aparelho.
Será que estamos passando “tempo demais” no smartphone? Será que estamos perdendo algo importante da vida social e urbana? Será que estamos nos isolando, de fato, quando enfiamos a cara no dispositivo?
Seria interessante investigar o que, de fato, fazemos quando interagimos com o aparelho. Pois, se estamos “viciados”, estamos viciados em nossos próprios afazeres, em interagir com nossos amigos, familiares e cônjuges, em trabalho e na comunicação profissional, em comer, em ver o mundo, interagir – ter acesso a informação.
Todos ligam o aparelho logo após o pouso do avião. Antigamente, nossos entes queridos saberiam que chegamos bem apenas quando estivéssemos na porta de casa. Hoje, ficamos vigiando os “pauzinhos” do WhatsApp, medindo o tempo que demoram para nos responder, monitoramos em nossa própria imaginação o afeto que os outros têm por nós.
Estamos vivendo o fim da privacidade? Já que publicamos nossa vida pessoal em um frenesi de compartilhamento e autopromoção, contando detalhes íntimos de suas vidas. Mas, se observarmos o conteúdo e a forma desse compartilhamento, veremos que estamos construindo uma imagem pública cuidadosamente arrumada, promovendo uma face de nossa personalidade, e não a inteireza de nossa complexidade pessoal. Sufocamos nossa intimidade sob uma massa de autoimagem delirante. Procurando nos encaixar, cada vez mais, em padrões estabelecidos por um coletivo que pouca importância dá ao nosso bem-estar.
Talvez, um psicólogo diria que se trata de um exagero de nosso ego: o smartphone seria um espelho distorcido que nos ajuda a inflacionar nossos delírios psicoemocionais, nossa autoimagem distorcida e incompleta. É possível ter saúde mental nesse contexto?
Por outro lado, o smartphone é um ponto de coleta de informações pessoais, metabólicas, geográficas, sociológicas: ofertamos enciclopédias sobre nós mesmos. Mas, essa riqueza de informação é utilizada apenas por uma pequena classe de corporações e empresas, as únicas capazes de consolidar massas enormes de dados com alta precisão: sabem mais sobre nós, do que nós mesmos.
A privacidade, longe de estar no fim, foi reconfigurada de uma maneira para o qual a sociedade, a política e a justiça social não estão nem remotamente preparadas: não sabemos avaliar, nos posicionar e compreender as consequências socioeconômicas, políticas e culturais dessa revolução informacional que carregamos no bolso.
O que vem pela frente?
Mas, quem critica o smartphone quer, de fato, seu fim? Esse fim é possível? Ou simplesmente iríamos desmembrar as funções do smartphone em um monte de dispositivos diferentes?
Ou será que precisamos de uma nova “etiqueta”, aprender “bons modos” ao smartphone? Como são comuns reuniões arruinadas pelo “pseudo-multitasking”, pessoas avoadas pensando em milhares de coisas ao mesmo tempo. A naturalização da perda da qualidade de presença e atenção: reuniões difusas, sem atenção e decisão clara. Casais que mal se olham. Filhos perdidos em locais públicos, seus pais perdidos no ciberespaço.
Um exemplo diretamente relacionado às Cidades Inteligentes: faz sentido termos uma “Central de Monitoramento e Controle”, quando todo servidor público pode ser notificado em tempo real e participar de uma ação emergencial por meio do smartphone? Em outras palavras: ainda faz sentido falar de “local de trabalho”, quando todo mundo trabalha de qualquer lugar? Todo o arranjo territorial das cidades é transformado pela onipresença do smartphone, capaz de desempenhar todas as funções que estavam, antes, fixas no território.
O mesmo vale para a cultura, a identidade, a autoimagem, o afeto, a sexualidade, a educação, a construção de sociedade e da paisagem urbana e regional.
O celular nos arremessou em uma “geleia geral”, cravejada de novos critérios de convívio, percepção do ambiente (ou isolamento dele), e criação de identidade e presença, relações profissionais e comunitárias. Alguns acreditam que esse contexto não apenas impossibilita a vida psicossocial que tínhamos até 15 anos atrás, como também implode o Contrato Social (aquele que fundou o mundo moderno, no século XVIII).
Novas necessidades de uma nova realidade – um novo ethos para um novo oikos.
O smartphone, ou aquilo que irá substituí-lo, se tornaria parte integrada de nossa realidade, como outros artefatos que são extensão de nossos corpos: habitações e veículos, mobiliário e vestuário, utensílios domésticos e ícones religiosos. Assim como acordamos e nos vestimos, escovamos os dentes e olhamos no espelho, também verificamos as mensagens, tarefas do dia, anotamos lembretes no smartphone.
O próximo passo seria a realidade aumentada? Essa tecnologia que tenta tornar-se relevante, sem sucesso, há 20 anos: um cenário futuro em que esse “assistente pessoal” se tornaria inseparável de nossos corpos, intermediando nossos sentidos 24 horas por dia.
Já que acordamos e vamos dormir conectados, não faria sentido ter o smartphone implantado no corpo? Um dispositivo que, intermediando todas as relações sociais, é a presença mais constante em nossas vidas? Ele se tornaria uma espécie de “anjo da guarda”? Um posicionador global que salvaria vidas: desaparecimentos seriam impossíveis. Ou essa seria a invasão máxima de nossa intimidade e privacidade?
Mas, nesse cenário futuro de onipresença total, torna-se necessário questionar: qual o estatuto de algo tão íntimo, inevitável, fundamental? Ainda consideramos o smartphone como algo privado? Ou estamos falando de uma infraestrutura pública, cujo estatuto é pessoal e privado, como nossas casas, mas é um dado da vida coletiva e pública, como o direito à moradia? Quase todas as coisas que têm essa onipresença (como a higiene pessoal e o transporte) oscilam entre o público e o privado, e consideramos que todas as pessoas têm igual direito a esses bens e serviços.
Prover smartphones seria uma obrigação do Estado, no sentido de prover um meio universal de acesso a serviços públicos e privados?
Por outro lado, lembremos que a mera existência do smartphone foi possível pelo dinamismo da iniciativa privada, sempre capaz de inovar mais do que os entes governamentais, famosos por sua morosidade. Mas, as empresas privadas não têm nenhuma obrigação quanto à igualdade e universalidade de acesso a serviços. No entanto, sem estes, não podemos participar da sociedade. Assim, o acesso ao dispositivo não seria parte dos direitos básicos do cidadão, como educação e saúde?
Questionar o estatuto sócio-político do smartphone é questionar o próprio sistema social em que vivemos. Indo além do capitalismo e do socialismo, e ainda da social-democracia e o medo de uma ditadura da vigilância constante, alguns questionam que uma democracia digital que preserva os direitos humanos, a privacidade e a liberdade individual só será possível se as pessoas se tornarem “simbiontes” da cibercultura: assim como ninguém anda nu na rua, ninguém ficaria sem estar assessorado por um dispositivo digital mediador de todas as relações sociais, pessoais, profissionais, políticas e econômicas.
Claramente, não estamos preparados para essa realidade, ela não cabe nos rótulos dos sistemas políticos existentes. Nossa casa urbana, o oikos que habitamos, precisa ser reconfigurada. E esse novo oikos exige que criemos um novo ethos. Precisamos agir rápido, antes que a gente pire de vez.
As ideias e opiniões expressas no artigo são de exclusiva responsabilidade do autor, não refletindo, necessariamente, as opiniões do Connected Smart Cities
Head de inovação na Kyvo e fundador da Bootstrap. Arquiteto e urbanista, há mais de 25 anos pesquisa as complexas relações entre urbanidade, tecnologia, comunidades e inovação. Professor e pesquisador coordenador do grupo Cenários Urbanos Futuros (RITe-FAUUSP), além de consultor em projetos de inovação e transformação organizacional, com abordagem do Metadesign para processos de transformação cultural e urbana.