Precisamos de novos conceitos que deem conta dessa transformação profunda, que nos assegurem alguma continuidade, legitimidade e tranquilidade em cenários imprevisíveis.
Em 2001, publiquei o primeiro artigo em português sobre “Realidade Aumentada”. Levantei questões a respeito do futuro da cidade imersa em um “meta-espaço” digital, e suas implicações para as relações econômicas, políticas, culturais e psíquicas entre cidadão e cidade.
Nesses vinte anos, esse tema sumiu, reapareceu e foi reinventado diversas vezes. Em geral, sem maiores consequências, por dois motivos: (1) a tecnologia não estava desenvolvida para prover interação imersiva de qualidade – o enorme desafio técnico de sobrepor visualmente elementos virtuais à paisagem da cidade e ambientes interiores; e (2) os paradigmas de interação usuário-sistema (a experiência do usuário) não estavam desenvolvidos o suficiente para que essa imersão fosse compreensível, engajante ou relevante.
Em paralelo a esse movimento, duas tendências cresciam velozmente: a Economia de Dados, suas múltiplas ramificações e aplicações – desde o uso de dados para prever comportamentos de consumidores e cidadãos, até a criação de modelos preditivos e de resposta rápida baseados na geração de dados em tempo real, por meio da Internet das Coisas (IoT), hoje quase sinônimo de Smart Cities; a Realidade Virtual, uma realidade completamente simulada no interior do computador, diferentemente do híbrido da realidade aumentada – ambientes virtuais populares, como jogos multi-jogadores (Minecraft, Roblox e World of Warcraft, p.ex.), são exemplos bem sucedidos de realidade virtual – tecnologias emergentes, a exemplo do Oculus Rift e o uso de smartphones como janelas para esse mundo virtual, demonstraram a viabilidade técnica do Metaverso.
Essas duas tendências se associam a uma terceira, os chamados “Cripto-Ativos”, como o Bitcoin e NFTs, ambos baseados na tecnologia do Blockchain, que questiona o futuro do sistema financeiro e bancário.
Como muitas outras pessoas, eu vejo essas tendências convergindo em uma transformação rápida, profunda e irreversível da economia, da sociedade e da cultura que se manifestará, é claro, em transformações urbanas.
Alguns chamam essa convergência de “Web 3”. Mas, é útil compreendê-la por meio de duas aplicações práticas:
(a) Duplos Digitais – a representação tridimensional de artefatos, como automóveis, edifícios e cidades, permitindo simulações complexas, colaboração entre muitos profissionais, e testes que, se feitos em objetos reais, seriam custosos ou perigosos demais – os duplos digitais prometem transformar a gestão urbana – Seul é uma cidade pioneira neste sentido;
(b) Cidade Distribuída – a popularização da telecomunicação pessoal torna possível a “urbanização dispersa”, uma “explosão da cidade” sobre a paisagem do planeta em um tecido urbano esgarçado no qual misturam-se regiões de alta e baixa densidade, assim como o convívio entre funções historicamente apartadas, como habitação vertical e produção agrícola – pessoas tão diversas como investidores imobiliários e ativistas indígenas reconhecem essa tendência – movimento acelerado pela pandemia.
Mas, até certo ponto, o metaverso é um pleonasmo: antes de habitarmos a cidade de tijolos, vidro e concreto, habitamos o espaço de ideias, de relações sociais e comunitárias – o que os antropólogos chamam de “cultura” e o cidadão comum chama de “realidade”. Todos os lugares são “virtuais”: tanto a sua casa como a webconferência.
Por outro lado, podemos estar vivendo a maior transformação cultural desde a invenção da escrita, ou da revolução neolítica. Aspectos básicos da vida cotidiana estão em questão: o que é trabalho, educação, comunidade, sociedade e economia, território e governança? O que é legítimo, justo, ético e apropriado? Precisamos de novos conceitos que deem conta dessa transformação profunda, que nos assegurem alguma continuidade, legitimidade e tranquilidade em cenários imprevisíveis.
Onde estou? Do que faço parte? O que me pertence? O que compartilho no Metaverso?
Como parte da aplicação do Metadesign ao estudo das cidades e da prática do urbanismo, proponho que é necessário rever o conceito tradicional de “Oikos” para que possamos visualizar nossa presença, posição e relações de pertença no contexto do Metaverso.
Na antiguidade grega, o “Oikos” (“casa”) não era apenas o edifício que habitamos, e sim a propriedade público-privada desse edifício, da “fazenda” ou da “colônia”: o lugar que habitamos e do qual tiramos alimentos e riqueza. O Oikos é o conjunto das relações de pertencimento: nós pertencemos a ele e este nos pertence.
Sua posse e seu controle sempre foram objetos de disputa. Seu funcionamento social e político atravessa toda nossa história cultural e econômica: hereditariedade (quem herda meu Oikos, meu “patrimônio” após minha morte), o “dote” do casamento da filha (o patriarca entregava parte do Oikos com a mão da filha), o território como propriedade privada produtiva, utilizada como moeda de troca, sujeita a disputas bélicas e políticas. O termo “Oikos” está nas palavras Economia (Oikonomie) e Ecologia (Oikologie), articulando os conceitos de pertença e propriedade: seres vivos pertencem ao ecossistema, assim como este lhes dá senso de pertença; seres sociais disputam propriedade, não apenas no sentido de propriedade privada, mas também quanto ao que é “apropriado”.
Três grandes movimentos tornam obsoleto o conceito tradicional de Oikos:
– O movimento ecológico e a transformação regenerativa de nossas relações com a natureza;
– A transformação dos hábitos e costumes alinhada com a igualdade de gênero e raça;
– A digitalização do trabalho, da produção de riqueza e a criação de laços remotos de pertença e participação na sociedade;
Até pouco tempo, os limites dessa rede de pertencimento estavam claramente definidos no território. Hoje, com a popularização da tecnologia digital e da telecomunicação pessoal, essa rede se estende por todo planeta, atravessando o território por todos os lados. Para que a sociedade não se transforme em um pesadelo distópico, precisamos criar um novo conceito de Oikos que inclua privacidade de dados, múltiplas localizações geográficas, laços flutuantes de pertencimento e relações micropolíticas – o entrelaçamento do virtual e o territorial.
Ainda não há uma direção clara para o desenvolvimento desse tema. Sequer é discutido em fóruns públicos. Proponho a construção colaborativa desse novo Oikos atualizado e relevante para nosso futuro em uma sociedade sustentável, igualitária e do bem-viver: um projeto coletivo de grande escala com repercussões legislativas, tecnológicas e culturais. O mesmo empenho colocado no desenvolvimento do Metaverso precisa existir para redefinir o Oikos. Sem essa discussão, creio que estamos entrando em uma fase da história urbana de profunda confusão, mal-estar e ilegitimidade. Por outro lado, o desenvolvimento de um novo conceito de Oikos pode inaugurar um novo jeito de se fazer cidades, construir inteligência coletiva e criar riqueza compartilhada.
As ideias e opiniões expressas no artigo são de exclusiva responsabilidade do autor, não refletindo, necessariamente, as opiniões do Connected Smart Cities
Head de inovação na Kyvo e fundador da Bootstrap. Arquiteto e urbanista, há mais de 25 anos pesquisa as complexas relações entre urbanidade, tecnologia, comunidades e inovação. Professor e pesquisador coordenador do grupo Cenários Urbanos Futuros (RITe-FAUUSP), além de consultor em projetos de inovação e transformação organizacional, com abordagem do Metadesign para processos de transformação cultural e urbana.