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AS PROMESSAS E OS PERIGOS DA CIDADE PÓS-PANDEMIA

Caio Vassão
Caio Vassão
Head de inovação na Kyvo e fundador da Bootstrap. Arquiteto e urbanista, há mais de 25 anos pesquisa as complexas relações entre urbanidade, tecnologia, comunidades e inovação. Professor e pesquisador coordenador do grupo Cenários Urbanos Futuros (RITe-FAUUSP), além de consultor em projetos de inovação e transformação organizacional, com abordagem do Metadesign para processos de transformação cultural e urbana.

É papel de quem pensa, propõe e implementa urbanidade contribuir para que as iminentes transformações urbanas sejam menos traumáticas

As limitações à interação social impostas pela pandemia converteram a cidade contemporânea em um palco de experimentos sociais que transformam rapidamente as relações socioeconômicas e territoriais, confirmando algumas tendências históricas ligadas à economia em rede, mas também evidenciando problemas sociais crônicos do nosso meio urbano.

No futuro próximo, teremos que enfrentar um novo abismo social. De um lado, uma nova classe média global, que trabalha de modo totalmente remoto e passeia pelo território construindo um novo tipo de cidade, a “Cidade Distribuída” pautada pelo uso intenso de telecomunicação e relações transitórias com o território: a “translocalidade”. De outro lado, as novas classes média baixa e baixa fornecem serviços e conveniências para essa nova classe média, e é uma parcela da população que, pela falta de opções de renda e construção de carreiras, se submete a atividades precárias, sem qualquer estabilidade ou garantias: o “precariado”. De um lado, a cidade em rede, das relações complexas e dinâmicas com o território, do outro a cidade das dark kitchens, dos entregadores e da uberização de todas atividades, com pouca liberdade de escolha em sua relação com o território.



Uma nova gentrificação

Vemos a relação entre a classe média e o território ser cada vez mais mediada por serviços urbanos de conveniência, como Airbnb, Uber ou Getninjas. Trata-se de uma nova gentrificação, móvel e dinâmica, em contato apenas transitório com as regiões que ocupa, e com ainda menos pertença do que a gentrificação “tradicional”: os usuários desses serviços não precisam conhecer, investigar e construir relações de entendimento e respeito pelo território que exploram; recorrem às plataformas de serviços para obter o máximo de valor com o mínimo de engajamento com a realidade da população local. Esse descolamento entre a economia de consumo e o território é algo muito perigoso para o futuro das cidades.

O que vem pela frente?

Vislumbro dois cenários futuros: 1 – que as populações precarizadas consigam – com ou sem o apoio dos provedores da “economia de plataforma” – construir um modo de vida tão móvel quanto a classe média alta, ingressando na nova classe média global, ou 2 – que sejam crescentemente aviltadas pelas relações economicamente desiguais, arremessadas em uma situação de crescente vulnerabilidade sócio-econômica.

No primeiro caso, pergunto: como será a cidade que emerge de uma sociedade que tem relações inteiramente translocais com o território? Seria uma sociedade da economia distribuída, todos os profissionais filiados a plataformas digitais de empregos, a “uberização generalizada” da economia, em que a diferença entre provedor e beneficiário de serviços é meramente uma condição eventual, os dois trocando de lugar o tempo todo? Como seria a qualidade de vida nessa nova economia urbana?

No segundo caso, teremos um abismo social crescente que separa duas sociedades: a classe média global – e também brasileira – cada vez mais afluente, desfrutando de serviços sofisticados crescentemente automatizados, que geram cada vez menos empregos e oportunidades de renda a uma classe economicamente vulnerável, também global, mas excluída da sociedade de consumo e atrelada a um território que oferece oportunidades reduzidas.

O que podemos fazer?

No surgimento da cidade moderna, em meados do século XIX, as transformações profundas dos hábitos das populações urbanas provocaram convulsões sociais violentas nas futuras metrópoles como Nova York, Paris e Rio de Janeiro. No surgimento da Cidade Distribuída, a cidade da translocalidade, podemos esperar algum conflito social de igual intensidade nos próximos anos?

É papel de quem pensa, propõe e implementa urbanidade contribuir para que essas transformações sejam menos traumáticas, indicando como os serviços urbanos poderiam promover a integração social e territorial, reduzir o descolamento entre a nova classe média global e o território, e oferecer oportunidades de sobrevivência econômica não só de curto prazo (como se oferece hoje ao precariado) mas também de longo prazo em uma efervescente economia “glocal” (que integra o local e o global).

Sugiro que os serviços da Cidade Distribuída tenham melhor desempenho em três pontos: 1 – incremento da renda dos seus “colaboradores”, para redução de sua fragilidade socioeconômica e eles próprios possam participar como consumidores da economia glocal; 2 – os serviços de acesso a bens territoriais (hospedagem, alimentação, mobilidade, paisagem, etc.) devem convidar seus usuários a compreender onde estão, com quem estão interagindo e construindo realidades compartilhadas, as dificuldades de quem provê os serviços não devem ficar convenientemente ocultas por um véu de conveniência; 3 – os serviços urbanos devem ir além dessa conveniência, contribuindo de modo ativo e direto para a construção de comunidades que incluam membros dos mais diversos níveis de renda e contextos socioculturais.

 Os provedores de serviços urbanos precisam assumir co-responsabilidade pela construção de uma cidade que promove não só o consumo de alto valor agregado, ligado à economia global, mas também inclui a sustentabilidade da sociedade, necessariamente ancorada no território e nas relações de vizinhança.

As ideias e opiniões expressas no artigo são de exclusiva responsabilidade do autor, não refletindo, necessariamente, as opiniões do Connected Smart Cities  

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